20121227


Estou habituado a ser considerado o esquisitóide que vê coisas que mais ninguém vê. A última vez que me aconteceu isso foi na semana passada, quando vi o filme A Origem dos Guardiões. Incomodou-me terem dito que pelo facto de não verem o coelho da páscoa, esta deixaria de existir. Dou de barato o Pai Natal porque creio que o Natal ainda vai para além dele: a tradição da família à volta da mesa, os presentes (ainda) ligados ao Menino Jesus, tempo de paz, alegria e concórdia. Há, ainda e apesar de tudo, uma ligação ao Deus que se fez pequeno por nós. Mas o coelhinho da páscoa ? Por amor de Deus!

Como nunca mais aprendo, caí na asneira de referir, ainda que baixinho, que aquele filme era ateu. Como nunca mais aprendo, caíram-me em cima, que andava a ficar mais papista que o papa, que não tem nada a ver, que ele até refere no filme que a pascoa é um tempo de renovação, etc etc etc. Algo de muito parecido ao que aconteceu quando disse que os Gato tiveram um papel absolutamente decisivo no curso do referendo do Aborto, com o seu gag sobre o Marcelo: era para rir, mas instalou-se de tal forma no subconsciente colectivo que, acredito ainda hoje, foi absolutamente decisivo - e fatal - para o desfecho final.

Claro que isto não quer dizer que me oponha nem aos filmes nem aos Gatos que por aí abundam. Abomino o pensamento monolítico, qualquer que seja a sua proveniência, e defendo a liberdade pessoal como um valor fundamental. No entanto, temo muito a ausência de pensamento crítico, a consciência de massas, que nos retira toda e qualquer liberdade sem que disso demos conta, transformando-nos em marionetas facilmente manipuláveis em nome de um pensamento comum.

Por isso, esta é das coisas que espero nunca aprender. Hei de sempre ser o esquisitóide que vê o que mais ninguém vê. E hei de sempre cair na asneira de o dizer.

20121219

Bênção das Grávidas (O Poço 201212)




Se em todas as Eucaristias se celebra a vida, a do dia 8 de Dezembro era particularmente rica na sua simbologia: rodeadas pelos soldados da paz, que tantas vezes dão a sua vida para proteger a vida alheia, as jovens mães, que carregavam os seus amados filhos como Maria carregou Jesus no seu ventre, pediam à Mãe do Céu a luz e a sabedoria para a sua maternidade.

Não é difícil perceber a importância da Bênção das Grávidas, particularmente nos dias de hoje, tão propensos ao individualismo. Até os argumentos difundidos pelos órgãos de comunicação social para se ter filhos têm uma raiz individualista defendendo que eles são a garantia do nosso futuro. No fundo, relegam para segundo plano a conceção de um filho como o maravilhoso resultado de uma dádiva mútua de amor que tem o Amor de Deus como origem e testemunha.

Esquecemos demasiadas vezes que cada vida gerada é um sinal de esperança e um testemunho de confiança. Um sinal que, afinal, nós ainda esperamos em Deus, ainda Lhe confiamos o nosso futuro, ainda acreditamos, no mais íntimo e profundo do nosso ser, que o Amor suplanta o dinheiro, a lógica e a tecnologia.

E que cada criança gerada é um motivo para dizermos que o Senhor faz em nós Maravilhas.
Santo é o Seu nome.

Zé Armando Pinho

Mesa de São Pedro (O Poço 201212)


Começaram por ser meia dúzia que, envergonhados, deslizavam sob a  penumbra e se sentavam, fixando os seus olhares algures no chão do improvisado refeitório. Agora, passadas escassas semanas, já se contaram setenta refeições, servidas numa só noite, na Mesa de São Pedro.
É muita gente, convenhamos!
Demasiada!
Por todos os motivos.

Esta é uma daquelas ações que preferíamos todos que nunca tivessem que acontecer no meio de nós, e que ansiamos que algum dia tenha que fechar por falta de utentes. Sendo um ato de pura disponibilidade – de tempo, de trabalho, de bens, de entrega pessoal – não deixa, contudo, de ser um ato  que envolve alguma dor: a dor natural de quem é íntimo da necessidade absoluta de ser servido une-se, como que paradoxalmente, com a dor de quem serve e se confronta com o sofrimento que os seus olhos refletem. A Mesa de São Pedro não é, por isso, um ato de caridadezinha piedosa de pessoas que têm que encontrar forma de ocupar as suas vidas: é tempo roubado ao tempo para dar a quem precisa, é o arregaçar das mangas e passar das palavras aos atos, é fazer alguma coisa que de alguma forma consiga romper com o intolerável ciclo descendente que a vida reservou para alguns de nós.

A mesa sempre foi, para Jesus, um lugar especial. Sendo o espaço da confraternização (com + frater = junto do irmão), foi por isso pretexto de milagre quando Jesus transformou a água em vinho; lugar de escândalo quando comia com os excluídos; lugar de serviço quando lavou os pés aos discípulos; lugar de entrega absoluta quando celebrou a Última Ceia… Assim pretende ser, de alguma forma, a nossa Mesa de São Pedro. Necessariamente limitada às capacidades de cada um, prefere imitar Jesus e ignorar o escândalo que ainda é proferido à boca fechada e empenhar-se no serviço e na entrega ao outro como forma de contribuir para a restauração da dignidade daqueles que, porventura, terão dificuldade em encontrá-la neste período tão difícil das suas vidas.

Não sendo uma iniciativa agradável - nunca o poderia ser, quando temos que lidar com o sofrimento alheio – a Mesa de São Pedro pretende ser uma resposta, concreta e definida, ao inquietamento que o outro nos provoca, desinstalando-nos e forçando-nos a abandonar a nossa zona de conforto. Infelizmente, não acreditamos que a necessidade se esgote em pouco tempo. Por isso, precisamos sempre de ajuda, estamos sempre abertos ao contributo de todos aqueles que preferem fazer a opinar.

As portas continuam abertas.

Zé Armando Pinho

Celebrar o Natal (O Poço 201212)

Parece que este será um Natal um pouco fora do comum. A palavra crise foi a mais dita e escrita ao longo deste ano, todos estamos com receio do ano que vem e aqueles que ainda veem sobrar algum dinheiro ao fim do mês preocupam-se mais em poupar que em gastar o pouco disponível em coisas que farão parte do baú das recordações antes ainda do Ano Novo.

Qualquer pessoa de bom senso poderá afirmar que esta alteração de comportamentos, ainda que seja uma consequência de uma sociedade que persiste em viver apoiada no medo do futuro, não será de todo negativa. Principalmente se as dificuldades nos derem a capacidade de redirecionar o nosso olhar para aquilo que é verdadeiramente importante. E, no Natal como na vida, o importante é o Menino, que vem ao nosso encontro.


Habituados que estamos às efémeras sensações provocadas pela espuma dos dias, chegamos a um ponto em que nos deixamos interpelar com maior facilidade pela “notícia” que, ao que parece, o burro e a vaca não estiveram na gruta com Jesus, que com o facto de o nosso Deus se ter feito de tal forma pequenino que quis precisar de se refugiar nos nossos cuidados. Nós, que vivemos na era da informação, que andamos atentos a tudo o que se passa à nossa volta e do outro lado do mundo, perdemos a capacidade de nos espantarmos com aquilo que é verdadeiramente significativo para a nossa vida: Deus acampou no meio de nós.

Mesmo para aqueles que não têm fé, o nascimento de Jesus não é irrelevante. De facto, todos os valores que qualquer pessoa razoável defende, particularmente no mundo ocidental, enraízam nesse acontecimento de absoluta simplicidade e despojamento. Por muita irritação que provoque a todos aqueles que prefeririam que assim não tivesse sido, se  Deus não Se tivesse feito Menino, haveria palavras cujo significado permaneceria perfeitamente vazio de sentido. Palavras como solidariedade, dignidade, humildade, que são em si muito mais que meras palavras,  espelham ações efetivas, atitudes quotidianas, opções de vida, nas comunidades cristãs espalhadas pelo mundo. De uma forma que escapa ao entendimento de muitos, aqueles que as praticam preferem ficar no anonimato, permanecer fora das luzes da ribalta, agir no silêncio do compromisso com os outros, acolhendo-os nas suas vidas como os pastores acolheram o Menino: na simplicidade do seu trabalho, na disponibilidade dos seus corações.

Podemos, e devemos, por isso, colocar uma questão que nos é tão incómoda: como é que chegamos aqui? Como é que nós, cristãos, permitimos que a celebração do nascimento do Menino Deus se transformasse numa correria desenfreada que tem como fim último comprar coisas? Como pudemos colaborar ativamente para se desvirtuar, como se foi desvirtuando, um acontecimento que nos deveria levar a agir em sentido contrário, a olhar para os mais humildes, a estar com os mais indefesos? Como é que nós, que noutros dias até conseguimos escapar à lógica consumista em nome de uma sobriedade de vida que nos é pedida, não conseguimos resistir à tentação de fazermos exatamente o que todos fazem?

Ao longo deste ano, em conversa com várias crianças e jovens, apercebi-me que muitos deles, apesar de pertencerem a famílias católicas, não tinham presépio em casa. Seja porque dá muito trabalho, seja porque não passam lá muito tempo, seja porque a Árvore e o Pai Natal ocuparam o seu espaço, o que é um facto é que o Menino Jesus, nesses lares, continua com os seus pais à procura de um espaço onde possa ficar. De porta em porta, de coração em coração, aquela Família de Nazaré continua a não encontrar um lugar, ainda que singelo, em casas recheadas de ausências.

Alguns dirão que se trata apenas de uma tradição, que não passarão de meros bonecos vazios de significado. Que o que importa verdadeiramente são as ações. Esquecem contudo que, para além das ações, nós vivemos também de sinais, de tradições, de símbolos que nos identificam e com os quais nos identificamos. Que esses sinais, essas tradições e esses símbolos fazem parte da nossa herança cultural e religiosa que importa preservar e transmitir àqueles que verdadeiramente amamos pois resultam da escolha que Deus fez de vir ao nosso encontro. E que, se não os assumirmos como nossos, rapidamente serão substituídos por outros sem sentido, sem significado, como substituímos o Presépio pelo Pai Natal porque simplesmente não conseguimos viver sem símbolos, sem tradições… sem sinais!

Na nossa Paróquia recomeçamos, nos últimos anos, a celebrar convenientemente o Natal. Não apenas nas nossas casas, com as nossas famílias - que isso já o fazíamos, e muito bem - mas em comunidade, saindo do conforto dos nossos lares, do aconchego dos nossos e enfrentando o frio noturno para rumarmos à nossa Igreja Matriz. É uma Missa do Galo sempre muito bela, muito festiva, muito alegre, que nos ajuda a reconhecermo-nos uns nos outros e a formarmos Igreja. Para os que não o podem fazer – este tempo pode ser implacável para com os mais novinhos e os mais idosos – existe sempre uma oração para se fazer, em família, antes do início da Ceia.

Quantos de nós o fazemos? Quantos de nós, no meio daquela feliz azáfama familiar ou dolorosa solidão (sim, há quem passe o Natal na maior solidão!), nos lembramos que é o Seu nascimento que celebramos? Quantos de nós paramos para rezar antes daquela refeição?  São pequenos sinais, pequenas celebrações, pequenos gestos, insignificantes aos olhos de muitos, nem sempre bem entendidos por tantos outros. Mas são um testemunho vivo e importante que, tal como o fizeram os pastores e os reis, tal como o fizeram os animais que estavam no estábulo, tal como o fizeram tantos homens e mulheres antes de nós e outros continuam a fazer, também nós queremos acolher Jesus no meio de nós.

E Ele não veio senão para ser acolhido por nós para que possamos, nós próprios, ser um dia acolhidos pelo Pai.

Feliz Natal

Zé Armando Pinho

20121218


Quase que aposto, de olhos fechados, que sorris neste momento. Como o criador sorri quando se depara com a criatura. Sim. É (também) a pensar em ti e no que conversamos que estou agora aqui. Também mas não só. É sobretudo porque, depois do que conversamos, depois do que li, pensei que não era justo eu esconder-me dos olhares alheios enquanto me regozijo com a exposição alheia. Porque sabemos ambos que é disso, afinal, que se trata: expomo-nos nas palavras para que consigamos, por entre letras, por entre dentes, descobrir os sentimentos (ou, se tivermos muita sorte, que nos descubram os nossos).

Mas é também porque te li e gostava de te dizer que, apesar do medo do mergulho, também tu és uma história abensonhada. Ainda com muito de sonho, é certo, ainda com muito de medo, de procura, de projeto, de avanços e recuos, de tactear para tentar chegar, de dúvidas e mais dúvidas, e de confrontos - por vezes penso que os teus últimos anos têm sido essencialmente confronto! Mas tem sido também uma história abençoada. Pelo que espalhas, pelo que transmites, pelo que enriqueces e desinstalas.

E depois há a "nossa" história. Totalmente incomum, aparentemente desigual, como se tivesse apenas um sentido quando, na realidade, todo o sentido é sentido desde (quase) sempre. Uma história que, tal como nos livros de Carré, tem reviravoltas, tem partidas e chegadas, enlaces e desenlaces, e fins nunca à vista. Feita de cumplicidades e entendimentos e frequentemente mal entendida, mas que sobrevive, agora de uma forma diferente.

Porque na vida, à medida que o tempo passa, tudo é diferente.


Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...