20120216



Gosto de fotos assim, fora do comum, desafiantes, que me desmontam os conceitos tão laboriosamente construídos para minha própria segurança. Gosto de ser interpelado, levado mais longe, desencaminhado, incomodado, levado a pensar o impensável, a sentir o insensível, a questionar o absolutamente certo e seguro.

Desde há muitos anos que aplico na vida a velha máxima dos actores de Hollywood: "não há papéis menores, apenas há actores menores." Acredito piamente que na vida nada é menor, que nada é insignificante, que tudo contribui para a construção da pessoa em que nos tornamos.

Talvez por gaguejar, cedo aprendi a desconstruir as evidências. Aquilo que para uns é absolutamente garantido - um discurso fluido - para mim é resultado de uma escolha criteriosa de palavras; aquilo que para uns é anormal - o simples acto de gaguejar - para mim é a normalidade; aquilo que para uns é choque e surpresa - gaguejar não acarreta nenhuma evidência física e vejo sempre o olhar das pessoas quando me ouvem a primeira vez - para mim é o absolutamente esperado. Esta desconstrução das evidências, que já me é intrínseca, foi naturalmente transportada para todos os aspectos da minha vida. Por isso normalmente gosto do que mais ninguém gosta, penso o que mais ninguém pensa, com tudo o que isso implica. Como quando vi esta foto.

Fotos assim, que me desafiam, que me desmontam e me interpelam ajudam-me a ganhar o dia.

20120215


Regras para viver na Cúria (do Vaticano)

O consultor de uma congregação organizou os cinco «não» para se sobreviver na Cúria:


Não penses.
Se pensas, não fales.
Se pensas e falas, não escrevas.
Se pensas e falas e escreves, não assines como teu tome.
Se pensas e falas e escreves e assinas como teu nome, não fiques surpreendido.


Lido em Thomas J. Reese, "No Interior do Vaticano", Publicações Europa-América, p. 197 (Thomas J. Reese é padre jesuíta).


Ontem, ao pequeno almoço, o tema de conversa à mesa foi a minha capacidade, ou melhor, a falta dela, de chamar os meus filhos à atenção acerca de determinados comportamentos. Ou seja, na sua perspetiva - e não só - eu não teria "moral" nenhuma para os chamar à atenção porque eu próprio não teria um comportamento exemplar. 

Esta é uma guerra de muitos anos. Solitária, diga-se de passagem. Eu sei que é suposto dar o exemplo, eu sei que aquilo que pretendo comunicar terá muito maior eficácia se for no seguimento do meu exemplo. Eu sei isso tudo. Mas também sei uma outra coisa ainda mais fundamental e frequentemente desvalorizada: eu não sou a medida de nada para ninguém. Se eu chamasse a atenção aos meus filhos apenas daquilo que eu fazia bem, se estivesse agarrado à "moral" do meu exemplo, então estaria a confinar os meus filhos aos meus próprios limites. E essa é uma daquelas coisas que nunca pode acontecer. Um exemplo: o meu pai fuma desde que o conheço. Contudo, nunca me passou pela cabeça que tivesse a sua permissão para fumar - ainda que, neste caso concreto, não faça a mínima ideia se isso aconteceria. Porquê? Porque fumar é mau e nenhum pai deve permitir que um seu filho faça algo que é mau. 

A educação, a formação, o passado condicionante que um adulto teve não deve, não pode coibir esse adulto de ser um educador. Claro que o exemplo tem um outro peso, tem uma outra eficácia, mas em cada história de vida há condicionantes que não devem nunca ser transportadas para aqueles a quem temos que educar. E reafirmo-o: se assim não fosse estaria a limitar os meus filhos aos meus próprios limites, estaria a repetir neles as minhas próprias condicionantes quando os deveria fazer chegar mais além. E tal como dizia ontem a um dos meus filhos durante a discussão, nada me deixa mais genuinamente feliz e orgulhoso que saber que os meus filhos são, já hoje, muito mais que aquilo que eu alguma vez poderei ser. 

Coloca-se então a seguinte questão: se eu não posso ser o limite para os meus filhos, se não os posso formatar àquilo que eu sou, quem é então o seu limite? Com quem os faço medir? Com quem tento que eles se identifiquem? Para mim essa questão tem uma resposta evidente: Jesus. Porque eu quero o melhor para os meus filhos, apenas Ele pode ser a sua medida, apenas Ele pode ser a minha própria medida, sabendo todos nós, no entanto, que ficaremos aquém do desejado, o que, diga-se de passagem, também não nos faz mal nenhum. 

Esta nossa (tentativa de) configuração com Jesus é válida para toda a gente e, particularmente, para toda a Igreja, que somos nós. Se tivermos como exemplo de vida um padre, um bispo, um papa, se os endeusarmos, se tivermos os seus limites como sendo os nossos próprios limites, para além de estarmos longe do que deve ser a Igreja, estaremos abertos a toda e qualquer decepção. Porque também há maus padres, maus bispos e maus papas. Mas eu não pertenço à Igreja por causa de nenhum padre, de nenhum bispo nem de nenhum papa. Eu pertenço à Igreja de Jesus Cristo, que é o meu guia, o meu farol, Aquele com quem me meço todos os dias e me reabilita todos os dias e de quem todos os dias tento ser, infrutiferamente, testemunho.

Outra das questões que apareceram na discussão foi justamente a do testemunho e a responsabilidade que ele acarreta, nomeadamente na Igreja. Porque sou contra a ideia que a importância do testemunho do papa seja maior que a minha própria. Tal como eu vejo as coisas, para aqueles a quem tenho a responsabilidade de educar - seja em casa, seja no trabalho, na catequese ou em qualquer outra situação quotidiana, o meu testemunho é tão ou mais importante que o do papa. Tal como eu disse ao meu filho, o seu testemunho de cristão no balneário da sua equipa tem um peso muitíssimo maior que o do papa. Porque os seus colegas de equipa não ligam puto ao que o papa diz, ou que o bispo diz mas são diretamente interpelados pelas atitudes, comportamentos e palavras do meu filho. Aliás, tal como eu também lhe disse, foi justamente essa a revolução copernicana do Concílio Vaticano II: passarmos de uma Igreja institucionalista, vertical, para uma outra, horizontal, da qual todos somos chamados a ser, efectivamente, testemunhas. E essa, acredito cada vez mais, é uma responsabilidade que nem todos querem assumir. Por isso se refugiam nos erros da Cúria, do Vaticano ou do padre da aldeia.

20120214


Estou sempre a desmistificar.

Contrariamente ao que pensava antes de partir, muito do que ficou de Moçambique tem também a ver com sensações e não apenas com sentimentos.

Claro que tenho imensas saudades nossas, claro que é muito frequente ficar com cara de totó enquanto revisito as nossas orações, as nossas refeições, as nossas brincadeiras, claro que muitas vezes dou por mim como que teletransportado para as nossas caminhadas quotidianas, para as nossas conversas ao luar, para as nossas partilhas profundas. Tudo isso, que são sentimentos, é uma presença constante na minha vida.

O que eu não contava é que as sensações também o passassem a ser. Não consigo ver uma palmeira sem sentir Moçambique - e não foram assim tantas as que vimos! - não consigo ver ou ouvir falar numa ONG sem sentir Moçambique, não consigo estar num eucaristia dominical sem me apetecer bater aquelas palmas ritmadas de Moçambique. Moçambique, mais que uma recordação, tornou-se uma presença tão forte que quase consigo sentir os seus cheiros, o seu clima, o seu ruído e confusão naturais.

Ontem, em conversa, dei comigo a dizer aquilo que jamais diria quando cheguei de Moçambique: que não coloco fora de hipótese ir para lá no futuro. Parece que, afinal, Moçambique se me colou à pele mais do que esperava. Parece que agora, para além de ter que lidar com a tremenda saudade que tenho das pessoas, de todos nós - dos que voltaram e dos que ficaram - tenho também que aprender a lidar com esta coisa, para mim inteiramente nova, que é a saudade dos lugares, dos cheiros, dos sons e do ambiente.

Hoje, precisamente hoje, faz seis meses que nos despedimos de Quelimane. E Quelimane, faz hoje, cada vez mais, parte de mim.

De todos nós.

20120207

Daily Quote:

Perhaps strength doesn't reside in having never been broken, but in the courage required to grow strong in the broken places.


~ Unknown




Apesar de tudo, a minha personalidade tem algumas coisas que me deixam feliz. Uma delas é o facto de nunca ter acreditado em pessoas perfeitas e não ter ficado cínico por causa disso. Na realidade, não acredito que haja alguém perfeito. A não ser Jesus, claro. Mas esse é um outro campeonato. Acredito muito na capacidade que cada um de nós tem de fortalecer as cicatrizes, de viver com remendos e de acreditar que são justamente essas cicatrizes que as tornam mais belas. Também por isso eu tenho um gosto um bocadinho esquisito. Detesto aquelas mulheres tipicamente americanas, tipo Donas de Casa Desesperadas, sem encorrilhas na cara, sem nada descaído, como se fossem barbies ambulantes. Acho muitíssimo mais bonitas as mulheres naturais, sem pinturas, com cabelos brancos, com encorrilhas, com marcas de vida. E quem diz mulheres diz casas, lugares, carros...


Digo muitas vezes que as pessoas não têm que ser perfeitas para gostarmos delas. Aprendi isso muito cedo, muito menino e, embora tenha sido doloroso na altura, fez-me muito bem. Ajudou-me a tentar perceber as pessoas, a tentar colocar-me do lado delas e, fundamentalmente, a tentar percebê-las, ainda que continuando a discordar das suas atitudes e decisões. 

Sou amigo de um punhado de homens que são exactamente quem eu gostaria de ser: sérios, competentes, firmes, muitíssimo bons naquilo que fazem e reconhecidos por todos. Ainda há pouco tempo admirava a forma serena mas firme como um desses amigos chamava a atenção a um aluno. Sem alaridos, sem levantar a voz, mas confrontando-o olhos nos olhos, de forma a não dar qualquer hipótese de argumentação. Passados alguns dias disse-lhe justamente isso: que se eu alguma vez desse aulas gostaria de ser como ele, de seguir o seu exemplo.
Ainda bem que o fiz. São estas coisas que me fazem verdadeiramente feliz.

Levei muito tempo a aceitar-me tal como sou.Não é fácil. Sempre tive a imensa sorte de estar rodeado de pessoas verdadeiramente encantadoras, como diz o Pe. Almiro, que sempre me fizeram sentir pequenino no meio delas. Por vezes caio no erro de construir determinadas imagens de mim, de me refugiar nelas, de as apregoar aos sete ventos na expectativa que; à força de tanto o ouvirem, os outros não reparem verdadeiramente em mim. Como tudo aquilo que é falso, nunca duram muito tempo. Tenho sempre alguém que me é suficientemente próximo - e que gosta de mim o suficiente - para descobrir a inadvertida tramóia e me ajudar a desmontá-la.


20120206


Curioso...
Assim que vi esta foto pensei logo em ti. Na realidade, espanta-me eu não sejas tu a estar em cima do escadote, atarefada a semear as estrelas. Ou a recolhê-las, não sei bem. Porque tu és assim: ora vais semeando estrelinhas nas entrelinhas para que outros as possam recolher, ora tentas tu própria desencantá-las num qualquer canto escondido, como quem procura agulhas num palheiro. Outra coisa que nesta foto tem a tua cara é o aparente absurdo de cuidar das estrelas quando elas menos se vêem, quando está dia. Também tu és assim, queres lá saber das tuas condições, queres lá saber se o tempo é verdadeiramente o tempo de colher ou semear. Não estás nem aí, para ti é sempre tempo e fazes com que o tempo seja de alguma forma o tempo. Ponto final. E sim, também tu tens um escadote, também tu fazes questão de fazer das tuas fraquezas forças de forma a ver a partir de um pouco mais alto que aquele que te é natural, também tu usas os teus artefactos e artifícios para enganar a tua condição, qualquer que ela seja. E a varinha de condão tem tudo a ver contigo, Absolutamente tudo! Porque muitas vezes também tu tentas transformar a realidade, com um pouco de toque, com outro tanto de palavras mágicas, e a realidade transforma-se... e tu com ela.
De certeza que não és tu?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...