20210924


A minha memória tem coisas giras. Hoje, na minha (abençoada) caminhada matinal deparei-me com o diálogo destes dois bancos de jardim. Imediatamente, a minha memória recuou vários anos, a Quelimane, onde aprendi uma das grandes lições da minha vida: a importância do tempo para estar. Lá, sempre que eu visitava a casa de alguém, a primeira coisa que faziam era colocar duas cadeiras à sombra de uma árvore. Mesmo que eu dissesse que não valia a pena o trabalho, que seriam apenas uns breves momentos de conversa, insistiam, e eu lá me sentava adaptando, com dificuldade, o meu ritmo europeu ao africano. Mais tarde, o Padre Jorge explicou-me: era uma maneira de me dizerem que aquele tempo me era dedicado, sem pressas ou desvios de atenção, que eu era suficientemente importante para justificar esse trabalho e esse tempo.
Claro está que vim de Quelimane com a pretensão de fazer o mesmo. Em vão. Mas ficou a lição. E é mais uma daquelas coisas que me fazem sentir alguma culpa e eu remeti para as calendas da reforma. 
É um bocadinho estúpida esta tendência para a culpa pelo uso que faço do tempo. Sobretudo porque sou um privilegiado, porque tenho a possibilidade de viver a vida que escolhi e exercer uma profissão que, de tanto sonhada, por vezes ainda me parece inverosímil. Normalmente aproveito bem o tempo, raramente o sinto como desperdiçado, e isso tem-me permitido ser habitado por memórias e lugares e pessoas que me enriquecem. Mas a verdade é que, demasiadas vezes, privilegia em demasia o tempo ao fazer e concedo pouco tempo ao estar. Para sentar e escutar e falar ou simplesmente estar, e contemplar, e saborear tudo o que me é proporcionado viver. Porque, sempre que o consigo, esse é um tempo de encontro. E o tempo de encontro é tão bom quanto fundamental para que eu consiga ser feliz.

20210922


Convidaram-me para falar de como é esta coisa de viver com fé dentro às turmas do 11º ano. E eu, que padeço desta incontinência verbal que me impede de dizer não a um bom desafio, tolamente, disse sim. E desde aí ando com este assunto na cabeça. É que falar do viver na fé é a mesma coisa do falar do respirar. Eu sei que respiro mas, exceptuando nos momentos em que o exercício aperta, não ando a pensar na maneira como respiro, se o ar entra pelo nariz passa pelos pulmões e é expelido pela boca. Não estou nem aí: respiro e já está. E, pelo menos nesta altura do meu campeonato - não significa que tenha sido sempre assim ou que o seja para sempre - viver com fé dentro é-me tão natural quanto respirar. Quer isto dizer que todos os meus atos, todos os meus pensamentos, todas as minhas pequenas decisões quotidianas são refletidas e ponderadas e contextualizadas pela fé e decididas de acordo com a minha fé? Claro que não. No entanto, espero, desejo, anseio, que subjacente a elas esteja a fé e que espelhem a forma como vivo a fé. Mesmo nas camelices - e são muitas - e na maneira como me arrependo delas e as tento trabalhar para ir sendo melhor, está presente a fé. Ou, sobretudo nelas, nas camelices, porque originalmente foi essa permissão para renascer que me atraiu em Jesus Cristo. Este olhar sempre novo sobre mim, sobre os outros e sobre a vida, sem coisas na manga, sem ontens recalcados, prenho de presentes possíveis e futuros sonhados, vividos e contagiados, tem muito a haver com a minha fé, com a maneira como vivo a fé. Agora... como se explica isto senão vivendo isto?

20210920


 

A cada morte, a cada notícia de morte, a cada confronto com a morte dos outros, inevitavelmente penso na vida. Hoje vínhamos a conversar justamente sobre esse confronto, sobre o como e sobre o que vale ou não a pena viver. O Padre Almiro dizia sempre que mais vela uma vida gasta que uma vida enferrujada. Sim, mas... e a dor? Vale a pena viver a dor? Em nome de quê? E o sacrifício? Vale a pena o sacrifício? Em nome de quê? Até que ponto?

A minha experiência vai-me dizendo que tudo isso pode valer a pena. Se formos felizes. Verdadeiramente felizes. Não permanentemente alegres, que isso, para além de ser idiota, é impossível. Mas intimamente felizes, como apenas quem vive em sintonia consigo e com aquilo a que se sente chamado a ser é. Naturalmente, uma sintonia assim só se atinge depois de muita escuta e de muita cabeçada na parede. Depois de começar e recomeçar imensas vezes, tantas aquelas em que se duvidou se aquele era, de facto, o nosso caminho. Porque a felicidade não pressupõe a ausência de tristeza. Ou de dor. Ou de desespero. Isso tem outro nome: alegria. E a felicidade nem sempre é alegria. É também, por vezes, dor. Mas a felicidade pressupõe a aceitação transformadora do que dói, encarando-o e trabalhando-o para que ganhe sentido: se dói, há um sinal qualquer que eu não vi e preciso ver para poder trabalhar, e transformar. 

Se me perguntarem, dificilmente direi que vale a pena viver a dor. E o sacrifício. A não ser para podermos ser e fazermos ser mais felizes. Se não o formos, se não o conseguirmos fazer ser, se, apesar dos momentos de alegria, a dor permanece, esse é um sinal de que precisamos de mudar. Dentro de nós. Ou fora de nós. Sob o risco de deixarmos a vida escapar-se-nos por entre os dedos. Por muito que a tentemos agarrar.

20210915



Nesta fase do meu campeonato tenho uma preocupação especial em não ser anti-coisa nenhuma. Já aprendi - quase sempre como se aprende verdadeiramente, à custa de cabeçada na parede - que todas as pessoas têm a sua própria visão da realidade, que decorre de múltiplos fatores internos e externos a si. De uns, poderão ser até diretamente responsáveis, mas de outros não, a não ser na escolha do que cada um considera, ou não, importante assimilar. No entanto, independentemente disso, todos têm direito a ter a sua própria opinião e a manifestá-la, desde que seja coerente com a sua própria mundivisão e, claro, desde que conceda aos outros o mesmo respeito e liberdade pela sua própria opinião e idêntico lugar a que a manifeste.
Soa bonito, não é? É, sim senhor. Eu gosto. Mas há alturas em que é extraordinariamente difícil de concretizar. Nos últimos quinze dias, por exemplo, eu teria que ter uma força sobre-humana para conseguir respeitar o anti dos antis, sejam eles juízes ou velhotas a vociferar idiotices num megafone. Há um mínimo de respeito que coincide com um máximo de tolerância, e quando estes são ultrapassados estamos já, não no campo do direito à liberdade, mas no da exigência do respeito por essa mesma liberdade. Uma liberdade que demorou muito tempo e exigiu muitos sacrifícios para reconquistar. Uma liberdade que importa muito respeitar. E importa ainda mais preservar. 

20210913


Quem me conhece um pouco mais que apenas circunstancialmente sabe como me são caros os recomeços. Por um lado, sempre foram por mim tidos como oportunidades, como refazeres ou, mais importante ainda, como reseres, deitando fora tudo o que em mim se vai acumulando de detestável e desprezível, permitindo-me - ilusoriamente, claro - sentir-me um outro que não eu. Nesta perspetiva, o recomeço é prenho de desejo de ressurreição, de Pessach, pleno de juras de melhoria e de projetos sonhados que me permitam, finalmente, transformar no Homem Novo que sempre anseio ser. À medida que a vida foi acontecendo fui percebendo que a esta minha Páscoa se sucedia, invariavelmente, não a vida nova da ressurreição, mas a condenação ao deserto dos velhos hábitos. Que afinal eram vãs as minhas promessas e que eu continuava a ser eu, apenas com mais algum tempo em cima. E, ao ritmo de sempre, marcava nova data no calendário, esta sim, agora é que vai ser definitiva, verdadeiramente transformadora de mim, conferindo interminável vida a este ciclo.

Se estes eram os recomeços que me eram caros, no sentido de queridos, agora permanecem caros, mas num outro sentido, o do custo da perda. Porque agora, nestes recomeços, me faltam presenças, falta-me gente. Faltam alguns companheiros de trabalho, que escolheram outros projetos, outras vidas. E faltam alguns dos miúdos com quem partilhei entregas e orações e cantorias e até dores e alegrias. Uns e outros vivem nesta altura a alegria da sua própria Pessach, com aquela mistura tremendamente viciante de expectativa, risco e ansiedade, devidamente potenciados pela enorme quantidade de adrenalina que faz os sonhos voar, e nós com eles. Uns e outros são gente que parte, que deixo de ver nos corredores, que deixo de cumprimentar naquela quotidiana quase indiferença porque sei que amanhã o poderei fazer novamente. Uns e outros são olhos que deixo de ver, são vozes com quem deixo de trocar gracejos e piadas de gosto duvidoso, são pessoas com quem deixo de aprender, todos os dias, a maravilha do complemento direto da diferença.

O que separa ambos os recomeços? O umbigo. O meu umbigo. Na verdade, os meus recomeços de mim são desilusões. Irredutíveis e inevitáveis desilusões provenientes do pisar o chão das minhas expectativas. Tão inevitáveis quanto a minha persistente dificuldade em perceber que eu não sou um jogo de computador, que não posso fazer um reset de mim próprio, como se hoje eu não tivesse nada a haver com quem era ontem. Porque a ideia não é recomeçar, mas transformar. Transformar evolutivamente quem eu sou em quem eu gostaria de ser. Sem cortes drásticos. Sem ruturas impiedosas. Sem ignorar aquelas partes detestáveis e desprezíveis de mim – que continuam cá por dentro – mas, pelo contrário, reconhecendo-as, valorizando-as, para que as possa transformar e a mim próprio com elas. 

Os recomeços dos outros, dos que me habitam cá por dentro, são fonte de alegria. Porque, apesar da separação, é bom, muito bom, vê-los voar, testemunhar o seu crescimento enquanto pessoas de cabeça erguida, acompanhando à distância – e a distância hoje encurta-se de tantas maneiras! – os seus feitos e fracassos, rejubilando com uns e sofrendo com outros, sabendo que no final o que importa é que a bússola funcione em condições por forma a manter o rumo definido.

São-me caros, os recomeços. Sempre. São perdas e ganhos. São realidades transformadas e transformadoras. São oportunidades. São inevitáveis. São desejáveis. São, ao fim e ao cabo, o que nos faz despertar o desejo de crescer. 

Recomecemos, pois.


para aqui: https://hospedeignorado.blog


20210908


Uma das minhas necessidades básicas é o silêncio. Quando era muito miúdo, porque passava enormes quantidades de tempo sozinho, o silêncio era o meu habitat natural. Mais tarde, na adolescência, descoberto o valor dos outros na minha vida, o silêncio continuava a ser companhia quotidiana, sobretudo nas longuíssimas caminhadas casa-escola. No bairro só passava uma camioneta no início e final do dia e a escola ficava a três quilómetros de distância, e eu fazia esse percurso todos os dias, quase sempre sozinho. Quando comecei a trabalhar a sério, o gabinete ficava próximo da escola e como eu ia almoçar a casa, fazia doze quilómetros por dia a pé, quase sempre sozinho. E, mais tarde, quando conheci a Isabel e me foi permitido ir a casa dela, depois do jantar ainda ia e vinha a pé, mais dois quilómetros para cada lado, quase sempre sozinho. Não admira, por isso, que seja tão importante para mim caminhar, e tão natural ficar absorto nos meus pensamentos enquanto caminho. O que eu gostava era que esse recolhimento se mantivesse quando estou com outros. Sobretudo quando estou à vontade com outros. Como levanto as vigias sobre mim mesmo, tendo a dizer enormes disparates, a ser um bocadinho o joker lá do sítio, o que está nos antípodas do que me é mais confortável. Com o tempo aprendi que houve tempos em que provavelmente precisava disso - questões de falta de auto-estima - mas agora, quando isso acontece, fico ainda mais surpreendido comigo mesmo. E recordo-me do "por qué no te callas?" do rei Juan Carlos a Hugo Chávez. Muitas vezes faz-me falta um rei assim, para que possa ser mais dono do que calo que escravo do que digo.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...