20200220

o ohar de Deus


Hoje discute-se a eutanásia. Um dos temas mais fraturantes dos nossos dias.

Ao contrário do aborto, sobre o qual só tive certezas - é sempre o exercício de quem tem poder sobre quem não se pode defender, por isso nem há nada a discutir - sobre a eutanásia sempre tive muitas dúvidas. Eu sou católico, sei que a vida não me pertence, não veio de mim, não acaba em mim e, mais que isso, acredito mesmo que somos sagrados, que reside em cada um nós uma centelha de Deus, que me anima, que me orienta nos momentos mais difíceis e que, assim o desejo, seja capaz de me impedir de pedir para morrer quando estiver na maior das dificuldades. No entanto, se isto faz sentido para mim, aceito que não faça sentido para todos e que retire o sentido da vida perante um sofrimento atroz. E a uma vida vivida  que não encontra o seu sentido profundo apenas resta o sofrimento sem sentido. 

Concordo que toda esta questão se deva a uns alicerces que estão implantados na areia. Se a modernidade, a contemporaneidade ou o pós-modernismo têm o eu como base, nomeadamente o eu perfeito, belo e jovem, quando essa juventude se desvanece leva consigo o amor-próprio porque não consegue discernir a beleza da vida. Quando se passa a vida tendo o sucesso como horizonte e meta a alcançar a qualquer custo, a doença aparece travestida, antes de mais, de tremendo fracasso. Quando o hedonismo é a nossa forma de vida, a dor, permanentemente adiada mas inexoravelmente chegada é, antes de mais, uma desconhecida que entra de rompante e toma conta de tudo.

Todo este enquadramento cultural tem, necessariamente, uma implicação efetiva no olhar que cada uma lança sobre a própria vida. Na realidade, não podemos exigir a quem toda a vida foi um estrangeiro de si mesmo que volte a casa nos seus momentos finais. Até porque isso, a acontecer, seria a constatação que se viveu toda a vida enganado. 

Durante quase toda a sua vida, a minha avó nunca ligou puto à religião que nunca entendeu, e de cujos praticantes dizia cobras e lagartos. Apesar de nunca termos sido muito próximos, aproximamo-nos quando eu percebi que não teria avó por muito mais tempo e passei a visitá-la com maior frequência. Ao longo das nossas conversas ela, que sabia que eu estudava e era ligado a estas coisas da fé, começou a perguntar-me coisas sobre Deus e a vida depois da morte e a fé. Acabou por morrer poucos anos depois, em paz e ficando eu também em paz por me ter reaproximado dela.

Acredito que a nós, cristãos, nos resta este papel, tanto na eutanásia como no aborto como em qualquer outro caso de humanidade: o papel de estar, quando formos chamados, sem invadir mas propondo a nossa mundivisão, e, sobretudo, ajudando a ver a maravilha do olhar amoroso que Deus faz recair em cada um de nós. Qualquer que seja a nossa circunstância,

20200219

trincheiras


No Raiz saber calar é uma arte. Muitas vezes os miúdos apenas precisam de extravasar e quando nos chegam às mãos vêm já cheios de cargas emocionais complicadas e pavio curto. Provavelmente já apanharam na cabeça na escola e em casa e no supermercado e em quase toda a vida e por isso disparatam à mínima contrariedade, principalmente falando alto, na tentativa de passar o desconforto para o lado do opositor do momento: eu. Nos meus dias bons, calo. Não arredo pé de junto deles, olhando-os os olhos e escutando-os atentamente durante toda a descarga, sem nada dizer, sem nada argumentar. Isso desconcerta-os. Muito. Baixam o tom de voz e, aí sim, podemos começar a conversar acerca dos seus desconcertos e da forma de os concertar.

Esta semana tem-me confirmado isso mesmo. Na minha profissão, na minha catequese, na minha vida pessoal e familiar, redescubro que não consigo dar se não querem receber. Que não vale a pena estar a tentar impor ideias, valores ou sentimentos se os outros estão mais focados nos seus próprios argumentos que em escutar os meus, ou a vida, ou a fé. Quando isto acontece é-me extraordinariamente fácil e intuitivo entrar neste tipo de discussão, entricheirada e sem resolução. Na qual qualquer vitória é aparente e ilusória. Nos meus dias bons recuso-me a entrar na trincheira.

Então calo. À espera que a respiração serene, que o cérebro volte a ser oxigenado e que a vida aconteça. Como sempre acontece. Então aí sim, podemos começar a conversar. Verdadeiramente.

20200218

Sancho


Uma das minhas frases mais vezes ditas é "a vida é feita de escolhas." Uma das frases que mais preciso de ouvir é "a vida é feita de escolhas." Para quem me conhece bem, para quem me acompanha na vida mais que alguns momentos, para quem me lê a vida, sabe que isto é assim e melhor ainda, não fica espantado por ser assim. Na verdade, tirando numa ou duas coisas absolutamente essenciais na minha vida - a minha família, a minha fé e o meu trabalho - eu tendo a desvalorizar o valor da congruência. Por isso é frequente eu dizer aos outros justamente aquilo que preciso mais de ouvir.

Ontem, como resultado do confronto de ideias da catequese - miúdos do 9º ano têm este poder de nos confrontarem - dei comigo a pensar porque escolho amar quem amo. Sim, porque mesmo para que o amor aconteça na nossa vida temos que conceder a nossa permissão, temos que estar abertos à sua chegada, temos que, consciente ou inconscientemente, escolher sermos amados. Então, porquê esta pessoa e não aquela? Como o confronto vinha no seguimento do impacto do amor no cérebro, porque escolho amar apenas aquela pessoa e não todas as que provocam o acendimento das luzinhas no meu cérebro?

Porque a verdade é que o acender das luzinhas, por si só, não basta. É excelente quando acontece, é maravilhoso quando nos dá a volta à cabeça e à vida, mas é insuficiente. Porque essas luzinhas são apenas uma pequenina parte de toda a iluminação de amar, Sobretudo de amar alguém, que é o fenómeno que nos torna mais parecidos com uma árvore de Natal. Na realidade, àquelas luzinhas juntam-se outras, que se acendem quando fazemos alguém feliz, quando partilhamos os mais ínfimos pormaiores dos nossos dias, quando nos aconchegamos, no final de cada dia, no conforto do corpo e da alma que nos acolhem como seu. As luzinhas acendem, todas, quando testeminham esse eco nas luzinhas, todas, de quem se ama. 

Sem isso, seremos sempre D. Quixotes, muito engraçados, muito românticos, mas de triste figura porque amaremos apenas uma ideia, uma possibilidade de futuro, desfasada da realidade porque não nos implica nem às nossas escolhas. E eu, que adoro D. Quixote, sou bem mais parecido com o Sancho. 
Principalmente na pança.

20200217

cabeça



Não me é fácil manter a cabeça em cima dos ombros. Nunca foi. Por entre vontades de agradar e obcecadas e intermináveis procuras de pontos de vista, fico muitas vezes como o tolo no meio da ponte: leio isto e concordo, vejo aquilo e concordo, oiço aqueloutro e parece-me carregado de razão. Frequentemente chego à conclusão que a posição certa é algures entre todas aquelas que conheci, mas ainda assim não a consigo formular convenientemente, e, não raras vezes, fico caladinho como um chasco. E nunca gosto disso.

Desta vez é a eutanásia, o Marega e o racismo, o casamento dos padres, a ordenação das mulheres... tudo quase que me exige uma tomada de posição. E há tantas variantes a considerar!

Ontem, na eucaristia, aconteceu-me o que me acontece muitas vezes: a sabedoria profunda do meu pároco leva-me, na homilia, a reconsiderar pensamentos e posicionamentos. A eucaristia é, desde há uns anos para cá, como que um barómetro. Diz-me como estou, ressintoniza-me, reorienta-me, recoloca-me no lugar onde deveria estar mas quase nunca estou Por vezes há demasiado mundo em mim para tão pouca teologia. Não que isso me preocupe em demasia - é ao mundo que pertenço, é no mundo que eu vivo, é mergulhado no mundo que eu testemunho e vivo a fé - mas volta e meia é importante que eu volta a olhar com os olhos da fé. 

É que é apenas a partir dessa conjugação - mundo e fé - eu consigo descortinar o meu lugar. E manter a cabeça em cima dos ombros.

20200212

Diabo


Mal cheguei perguntou-me: será que existe o diabo? Tivesse sido colocada esta questão há poucos meses e diria convictamente que não. Hoje, sorri e respondi: se acreditamos no Espírito Santo, acreditamos no diabo. Cheguei aqui há muito pouco tempo. Num daqueles percursos mentais que me abrem o olhar ao novo. Vou percebendo que a movimentação do Espírito é em tudo semelhante à do diabo, mas em oposição. Que se acredito que o Espírito é aquela voz de Deus que me arde cá por dentro e me leva a querer fazer e a querer ser mais, por oposição eu também escuto muitas vezes essa outra voz que, pelo contrário, me leva a permanecer na minha mediocridade. 

A quem irei eu dar ouvidos hoje? Não quando estou concentrado e intencionado mas quando o dia corre, por entre afazeres e faltas de tempo? A quem irei dar ouvidos, hoje? De quem será a voz que os outros escutarão de mim? Do Espírito, que une, ou do que separa (diabolo = o que separa)?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...