20190925


É comum envolver-me de tal modo que me esqueço do mais elementar. Por isso gosto de voltar à base. Umas vezes voluntariamente, outras, porém, levado pela mão, como uma criança.
Amar dificilmente basta. Ou se basta. A não ser numa perspetiva umbilical. Mas aí, nesse caso, apenas existe uma pessoa amada: o próprio. Amar tem sempre uma dimensão de saída, de projeção, de transbordo. Ainda que numa dimensão mais silenciosa, como a ternura, amar tem sempre alguém dentro.
Este ano Cuidar é uma das palavras chave. Espanto-me sempre comigo próprio quando acordo e descubro aquilo que está diante dos meus olhos e não consigo ver sem que me peguem pela mão. Não há amar sem cuidar. Não há amar sem fazer crescer, sem mimar, sem acompanhar de perto, sem a alegria de testemunhar as mais ínfimas alterações, os minúsculos rebentos que são sinal de nova vida, o lento desabrochar. Não há amar sem assumir, sem fazer vida de, com e para quem se ama.
E como eu por vezes me esqueço do mais elementar da vida!

20190924



Cheguei ao CR e logo fui invadido pelo seu cheiro característico a papel e a livros. "O meu Pai tem muitas moradas" vem-me logo à memória. Eu também tenho muitas moradas. Afetivas. Eu também sinto muitas vezes que regresso a casa, apesar de estar em lugares diferentes, mas não novos. São lugares  e pessoas - sim há pessoas que são também minhas moradas - revisitados que reativam memórias, boas memórias, que vão fazendo aquela que é a história da minha vida.
Passei o fim de semana num desses lugares, à beira mar, numa das minhas moradas afetivas, com pessoas que são, elas também, minhas moradas afetivas, a falar e a viver um Deus que é a minha morada. Nada ali me era estranho. Nem sequer aqueles que eu ainda não conhecia e que começaram a fazer caminho e que daqui a uns tempos serão também memórias boas.
Há, no entanto, moradas que não são lugares de passagem, mas de refúgio, de chegar e ficar, de permanecer. São aqueles lugares, aquelas pessoas, onde permitimos que o corpo e a alma repousem, se entreguem, se confiem, onde não precisamos estar vigilantes porque nos sabemos incondicionalmente amados. É aí, a esses lugares, a essas pessoas, que regressamos sempre, porque corpo e alma precisam de regressar sempre, para que possamos verdadeiramente ser. De corpo e alma inteiros.

Não há, na vida, nada que se possa sequer aproximar da sensação de amar e ser amado. É como se as várias imagens que compõem a nossa vida, e que se vão lenta e progressivamente afastando umas das outras com o tempo, se voltassem a alinhar e o mundo se tornasse perfeito e nós perfeitos no mundo.

20190916


Tendencialmente, instintivamente, ferozmente, evitamos a dor. Comprometemos e descomprometemos, abdicamos e ligamos, recuperamos e perdemos, na vã tentativa de lhe escapar. Por vezes vamos ao limite de nós mesmos, ao limite dos limites que estipulamos para que nos possamos ainda reconhecer quando nos enfrentamos com o nosso reflexo, para que a dor não se torne tão presente. Tão inexoravelmente presente.
Em vão. É sempre em vão que fugimos da dor.
A sabedoria, então, não está em fugir da dor mas em integrá-la. Aceitá-la, torná-la nossa, sabendo que que também a dor é vida, também a dor é importante para que a vida seja plena. Também somos dor. Apenas assim nos aceitamos como um todo. Apenas assim nos conseguimos confrontar com a nossa própria escuridão, porque ainda a ilumina a nossa própria luz. Apenas assim, enquanto não nos perdemos na fuga, enquanto ainda nos temos, podemos superar a dor. E dar-lhe um sentido. Que é apenas um: o do amor.

20190904


Sempre gostei muito dos Jesuítas. Da sua visão do mundo, do seu estudo, da sua cultura, que é quase sempre mais vasta que a mera teologia. Normalmente os jesuítas são pessoas do mundo, embora ultimamente tenha pressentido uma tendência mais elitista do que gostaria. Do que não gosto mesmo, é da recorrência com que falam do demónio ou do diabo.

Não acredito que sejamos anjos ou demónios. Acredito que somos anjos e demónios. Acredito que, antes de mais, somos. Com a nossa personalidade, com os nossos vícios e virtudes, com as nossas dificuldades e dons. E acredito que vamos sendo, nos vamos definindo, à medida que vamos permitindo ou impedindo que as circunstâncias nos moldem ou desviem do que somos chamados a ser. No âmago das nossas entranhas.

E gosto de acreditar, ou faço por acreditar, que se nos dermos verdadeiramente ouvidos, se nos escutarmos atentamente no silêncio onde Deus nos fala, e se tivermos a coragem de fazer nossa essa voz conjunta, seremos mais felizes. Interiormente mais felizes. Exteriormente mais alegres.

20190901



Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode acontecer que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu; então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer: ‘Dá o lugar a este’; e ficarás depois envergonhado, se tiveres de ocupar o último lugar. Por isso, quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar; e quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados.

Na minha vida, há várias passagens bíblicas que me foram definindo ao longo dos tempos. Esta é uma delas. E uma das mais marcantes. Em várias dimensões.
A primeira, e aquela que será mais evidente para mim, é o de me deixar ficar para o fim. Na realidade, sinto-me sempre mais confortável na sombra que na luz. E quando assumo a luz é sempre no serviço, sempre no "lá tem que ser", porque o que gosto mesmo é de fazer parte de, sem dar nas vistas. Ao longo do ano que passou tive a possibilidade de participar em algumas orações no fundo da Igreja e isso é para mim um privilégio. E isso vem desta passagem. 
Outro aspeto que me liga a esta passagem é o gostar de ser chamado. Provavelmente será por defeito e inconsistência de personalidade, ou devido a mais uma das minhas carências afetivas, mas gosto de me sentir querido, gosto que gostem de mim, e isso é sentível quando me chamam. Normalmente, quando me cruzo com alguém que não vejo há algum tempo, acredito sempre que não se lembra de mim, e gosto quando me reconhecem, ainda que apenas pelo olhar. 
Não é que eu seja intrinsecamente humilde. Tenho dias e ocasiões e momentos e pessoas, como todos nós, mas gosto sempre mais de mim quando consigo se-lo. 
Há uns anos, em Taizé, uma das questões colocadas era que passagem bíblica marca a nossa vida. Na altura, eu não tinha uma declarada, evidente, daquelas que eu sentisse que me identificasse. Agora tenho várias. Algumas que me marcaram, outras com quem me sinto identificado, outras ainda que funcionam como metas a alcançar, como desafios que aceito na tentativa de ir sendo alguém melhor. Ainda que saiamos a perder, é sempre melhor medirmo-nos com a Palavra que com muitas pretensas sabedorias de algibeira que andam por aí. 

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...