20171025


Assim que se sentou ao meu lado percebi que hoje era dia de conversar. Aninhou-se em mim, como fazia quando pequenina, porque se para os pais os filhos são sempre filhos, para os filhos os pais são sempre pais. E essa verdade suplanta qualquer medida do tempo. Sabia do que iríamos conversar, que era chegado o momento de colocarmos as palavras em consonância com as ações, que isto de brincar às escondidinhas é sempre saboroso mas tem o seu tempo. Escutei, com enorme prazer, como escuto sempre aqueles que amo. Disse apenas que para mim o que importa nos meus filhos é se as suas escolhas são acrescento ou roubo. Se quem eles conhecem, a quem se ligam, a quem se entregam, lhes tiram ou acrescentam. E que a via íntima e profundamente feliz. E que, estando ela feliz com as suas escolhas eu estou feliz com as suas escolhas.

Quando digo que aprendo muito com os meus filhos não é porque fica bem. Aprendo muito com os meus filhos. Quando acabou o recolhimento e ela foi à vida dela fiquei a pensar no que acabara de lhe dizer. É muito comum em mim esta descoberta à medida que as coisas vão saindo de mim, numa espécie de navegação à vista que no meu caso normalmente produz melhores resultados que a reflexão. Porventura, em mim, as coisas sentidas serão mais fiáveis que as coisas pensadas. Menos complicadas são, pelo menos.

Perguntei-me, ontem, como me pergunto muitas vezes, se serei acrescento ou roubo. Para quem serei eu acrescento e para quem serei eu roubo. Durante o dia tivera ambas as manifestações e eu pesava-as devidamente, recordando a conversa com a minha filha.

Eu acrescento?
Eu roubo?

Gostaria de ter ficado mais satisfeito com a minha resposta.

20171018



Num dos meios onde passo uma parte substancial dos meus dias, a sensação mais importante que se pode transmitir é a possibilidade de recomeçar. São pessoas que sentem que nasceram já devidamente carimbadas, marcadas, como o gado destinado ao matadouro, e que muitas vezes desconhecem a possibilidade que (raramente) têm de assumir o seu destino nas suas mãos.
Movo-me todos os dias num contexto educacional. Leio e releio, vejo e revejo, escuto e volto a escutar artigos, filmes e programas sobre o printing que nos é feito logo os primeiros anos de vida que, não sendo absolutamente irreversível, é algo com o que temos que aprender a viver. No entanto, na maioria das vezes, estas marcas são depois desvalorizadas por omissão, numa massificação que teimosa e cegamente quer fazer igual o que à partida é tão diferente.
Não tenho nada a noção dos coitadinhos nem dos privilegiados. Trabalho todos os dias com miúdos que habitam ambas as margens da sociedade. Conheço-os. Converso com os que me permitem entrar, observo atentamente os que me mantêm à porta. À espera de uma fresta. Apercebo-me dos seus medos, das suas defesas, do imenso que, apesar das aparências, os une. Não acredito por isso que a forma de combater o privilégio de uns é privilegiar outros. Faltando-lhes ao respeito. Facilitando-lhes a vida. Tratá-los como coitadinhos é fomentar a preguiça, aprofundar a separação, semear o ressentimento. É por causa disso que abomino a facilitação generalizada e desleixada que grassa nos cursos "profissionais" onde muitos deles são despejados como quem lhes dá um rebuçado para não chatearem ninguém. Porventura pensar-se-à que se ganha tempo e dados estatísticos, quando na verdade adiam-se futuros e adensam-se gravidades.
Acredito na exigência da manutenção dos limites, claros e firmes. Acredito no compromisso e na exigência do compromisso. Acredito na necessidade das regras e dos valores e da convivência. E acredito que tudo isto apenas faz sentido se não fecharmos portas. Se deixarmos claro que cada dia é um dia. Se fizermos perceber que o que castigamos são algumas das atitudes e não as pessoas que as cometem. Acredito no imenso valor da partilha: dos olhares, das conversas, dos toques, do conhecimento mútuo. Acredito, fundamentalmente, que é permitido recomeçar. Sempre. Todos os dias. Sem recriminações. De braços abertos. De coração escancarado!


https://www.facebook.com/quebrandootabu/videos/1645802962142751/


20171011


Há pessoas que habitam no momentos que nos habitam. Pessoas que a vida mais tarde desmente dentro de nós mas que nunca nos deixamos desabitar. Recordamos conversas e olhares e risos e choros e caminhos calcorreados em comum sem permitir que nada conspurque essa memória. Há nisto uma espécie de inocência, um agarrar ao que é bom dentro de cada um e que, pelo menos naquele momento, se deixou desvelar. Um desvelo que é tão mais significativo quanto mais raro, porque nos concede o privilégio da memória da alma antes de.
Um dos enormes privilégios de trabalhar com miúdos é que os conhecemos (quase) antes de tudo. Mesmo os do Raiz, que nos chegam às mãos muitas vezes já marcados pelos infortúnios que deveriam ser exclusivos dos adultos, estão ainda no seu estado puro de irreverência e rebeldia, com uma doçura que, quando conquistada, é absolutamente desarmante! Depois, como frequentemente acontece, quando nos vêm visitar já depois de muita vida vivida e marcada pela marginalidade, o seu olhar veste-se ainda daquela inocência agora apenas recordada nos breves momentos que estamos juntos. Essa alegria, ainda que meramente momentânea, acende em nós uma centelha de fraco consolo: pelo menos connosco foram felizes em determinada altura. E de esperança: talvez, quando tiverem filhos, lhes queiram proporcionar essas boas memórias reatando assim os laços connosco.
Pouco consigo recordar da minha vida sem esta mútua construção de boas memórias.
Deve ser por isso que sou tão e tão bem habitado.

20171010




O que de mais importante acontece entre quem se ama não é visível. Nem palpável. Nem discutível ou sequer argumentável. Por isso não raras vezes meto água quando tento apalavrar a imensidão que ora alimenta ou atormenta o meu peito. E quanto mais tento traduzir essa imensidão, maior é a minha pequenez.
Tenho uma tendência inata para a musicalidade, até nas palavras. Há uma cadência, um ritmo, uma sonoridade, que me acompanham permanentemente, nos mais variados momentos, que impede o sossego do pensamento mas me liga à alma. Quase sempre deixo-me invadir por essa musicalidade e permito que ela me conduza, numa espécie de ligação direta que não passa pela razão. Arrependo-me muitas vezes do que digo e resta-me, por vezes orgulhosamente, o único consolo da autenticidade das minhas palavras, que espelham, sem refletir, sem ponderar, o que de verdadeiramente sinto e sou em cada momento. Burro e confuso e incongruente, mas pelo menos autêntico.
No sábado, depois da oração, o maior espanto não vinha do que dissera mas da forma como dissera: quase sem gaguejar. Mergulhado naquela paisagem feita de pessoas e silêncios e cânticos e cumplicidades mútuas em oração, era na realidade escasso o que passava pela cabeça antes de ser proferido. Abandonava-me ao espírito com o mesmo deleite e irresponsabilidade de quem confia cegamente e se deixa conduzir pelo amor.  Talvez daí o não gaguejar. Ligação direta. Sem passar na cabeça.
Num processo muito semelhante, quando converso a sério, a dois, intimamente, olhos nos olhos, alma na alma, também tenho tendência a não gaguejar, a deixar que a musicalidade tome conta de mim e a abandonar-me ao momento. Por vezes dizem-me que sorrio parvamente e perguntam.me o que estou a pensar. E raramente acreditam quando respondo que não penso. Limito-me a deixar fluir.
Disse ontem que, se não gaguejasse, seria uma pessoa muito diferente. E não para melhor. Normalmente, o abandono à musicalidade das palavras proferidas é um bom sintoma para mim. Significa que estou mergulhado. Que vivo. Intensamente!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...