20170125


Não há dores indizíveis ou amores indizíveis ou solidões e silêncios e alegrias e choros indizíveis. Nenhuma vida interior não pode ser dita de forma bela ou dura ou agreste ou poética. Nenhum arrebatamento não pode ser partilhado por quem leia aqueles que, com mestria, têm o dom e a arte de o colocar em letra.

Quando leio o Fio de Prumo, de HSC, ou as crónicas do Lobo Antunes, particularmente quando são sobre a dor ou a solidão, sinto a sua dor e solidão como se fossem minhas. Escrever assim deve requerer uma clareza de sentimentos e um desassombro ao alcance apenas daqueles que, ou estão já de bem com a vida e não têm nada a perder, ou nunca o estarão... e não têm nada a perder.


20170110


"Sol na eira e chuva no nabal" é algo que eu digo muitas vezes a muita gente. Sempre me causou alguma impressão que as pessoas quisessem coisas opostas ao mesmo tempo. Ou que não quisessem o negativo que sempre vem agarrado ao positivo de uma questão. Alicerçava-me em Job, para quem não fazia sentido louvar a Deus pelo que de bom acontece na vida e ir logo maldizê-lo ao primeiro desaire. Da mesma forma, acredito ser uma infantilidade acolher apenas o que de bom têm as pessoas e a vida e resmungar quando não gostamos do que ambas nos dão.

Várias vezes nestes últimos tempos foi-me devolvida aquela expressão por várias pessoas. Que, curiosamente, por vezes não sabem da missa a metade mas que, pelos vistos, não têm que a conhecer, tal é a evidência do que vou fazendo.

"Irão chamar-te reparador de brechas e restaurador de ruas destruídas." Descobri este pedaço de Isaías (58, 9-12) em Taizé há dois anos. Na altura foi uma revelação porque me parecia que encaixava como uma luva no que pensava que era e, sobretudo, no que desejava ser. Já não sentia motivo para me fazer acompanhar por Job, a quem recorri mil vezes ao longo da minha vida... e a quem regressei recentemente, como quem regressa a casa de um amigo que nos espera de braços abertos. E pedi-lhe que me ajude, mais uma vez, a restaurar brechas e a reparar ruas.

As minhas.

20170103


Hoje voltei à minha Foz. Que estava justamente como eu gosto! Durante aquela quase hora de céu cinzento e mar zangado apenas duas pessoas passaram por mim. Com passo rápido, como eu, porque sabíamos que a chuva tornaria a cair a cada momento. Foi bom voltar a caminhar sozinho. Eu adoro uma boa companhia, uma boa conversa, uma boa partilha de almas em modo peripatético, com uma boa (re)descoberta mútua que concede novas cores a tudo o que nos envolve e dá novos nomes às paisagens que nos testemunham. Mas volta e meia - mais volta que meia - preciso de respirar a sós. Começo-me a sentir abafado, invadido, como se a própria pele deixasse de respirar e preciso de ar puro, de mergulhar nos meus pensamentos, nas minhas fantasias, e construir novos mundos, os meus mundos, que apenas eu conheço, que apenas eu entendo, onde apenas eu pertenço.

Um dos meus filhos quer ir para a força aérea. Ou para a marinha. Ou para qualquer ramo das forças armadas. "Porque lá posso ser apenas mais um." Sorri, sem saber muito bem se isso é bom ou mau sinal. Por um lado não creio que ser apenas mais um seja bom a longo prazo. Mas por outro entendo-o bem. É o mais novo de cinco mais pais e avó e tios e desde sempre teve todos os olhares em cima dele, hiperatentos a tudo o que faz. Pensei que deve estar ansioso por respirar em paz, por poder escolher em paz, por poder assumir as suas escolhas em paz. Sejam elas quais forem!

Uma das minhas filhas vive sozinha desde ontem. Pela primeira vez na sua vida tem uma casa e um quarto e uma cozinha e uma sala e uma televisão e uma casa de banho apenas para si. Sem ninguém que lhe diga o que fazer e como fazer. Sem ninguém que lhe cobre o que fez ou deixou de fazer. Quando cheguei a casa dela só pensava como deve ser bom viver assim. Se eu conseguiria viver assim. Por minha conta. Absolutamente por minha conta. E como isso me transformaria. Seria melhor pessoa? Pior pessoa? Como me moldaria? Quem me moldaria? Como decidiria os meus dias e as minhas noites?

Inquietou-me.

20170102





"Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, 
pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. 
Basta a cada dia o seu problema." Mt 6, 34



Pés na terra, olhos no céu, coração ao largo.

Quando no colégio ou em Ramalde não acreditam que nunca bebi demais, justifico-me com a mesma frase de sempre: nunca me embebedei pelo mesmo motivo pelo qual não ando nos escorregas: não faço nada que escape ao meu controlo. Sempre que o digo sei que são balelas: efetivamente nunca bebi demais e é por esse motivo, mas ando algumas vezes em escorregas, apesar de me arrepender sempre a meio da descida quando ando às bolandas. Sei perfeitamente que o controlo, qualquer controlo, é ilusório. O mais que fazemos é um cálculo de probabilidades seguido de uma gestão de danos. A maior parte das vezes basta-nos levantar, sacudir o pó, e avançar. Quando temos sorte, com a ajuda dos que nos amam.
Nunca como no ano que acabou tive a sensação que a vida se me escapava por entre os dedos. E o mais curioso é que no início tive mesmo a ilusão do controlo. Ilusoriamente, acreditei que detinha o controlo do que era, do que ia sendo e pensando e sentindo e fazendo até que tudo se me escapou por entre os dedos. Num ano de perdas extremamente dolorosas - pessoais, familiares, comunitárias - muitas vezes senti que mal me conseguia manter à tona.

Espero ter aprendido a lição.

Pés na terra, olhos no céu, coração ao largo.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...