20131217
"Só o silêncio do rebentamento das ondas quebra o silêncio da espera." Podia ser uma daquelas frases bonitas que por esta alturas aparecem em inúmeros power points que todos os dias recebo alusivos ao Advento. Podia ser uma das belíssimas orações da manhã da Renascença com que tento começar os meus dias. Infelizmente, não é nada disso. É o título da notícia dos familiares que desesperam pelo aparecimento dos seus na praia do Meco.
Não consigo imaginar um desespero maior que aquele que aguarda que o corpo de um filho dê à costa. Não consigo imaginar como é possível viver depois disso, como as noites são imensas noites, como os dias deixam de ser dias. Não consigo imaginar a dor superior a qualquer outra dor que é perder um filho, qualquer que seja a circunstância em que isso acontece.
Silêncio e o barulho do mar. Duas situações que normalmente procuro quando preciso de me reencontrar, de me recolocar perante a vida. Duas situações que são o meu caminho seguro para encontrar a paz e a felicidade. Duas situações que, afinal, não passam de circunstâncias, de invólucros de uma interioridade que já lá está, que espera apenas que a desembrulhemos e a saboreemos como se fossemos íntimos do Mestre Tempo. Duas situações que assumem agora uma carga impossível de suportar para aqueles que esperam pelos seus no silêncio do mar.
Como lhes falará Deus hoje?
Como lhes será possível esperar outro que não seja o seu menino ou a sua menina que desapareceu no mar?
20131206
Hoje, o Gusto faria anos. Faria já não faz, porque morreu há pouco tempo sozinho, no hospital. Na altura as minhas filhas souberam que ele estava no hospital com prognóstico muito reservado: a vida que escolhera levar rebentara-o todo por dentro. E ele sabia-o. Dissera-mo há alguns anos quando, numa das minhas idas aos sem abrigo, estivéramos juntos na estação de S. Bento. Eu sempre gostei dele, ele sempre gostou de mim e dos meus, e no entanto, apesar da insistência delas, não consegui ir vê-lo ao hospital. Por falta de tempo, dizia eu para mim e para os outros, sabendo no entanto que, se quisesse mesmo ir, tempo era o que não me faltava.
Neste tempo do Advento tenho andado com a mochila na cabeça. O que carrego eu, todos os dias, na minha mochila? Para que é que reservo eu espaço na minha vida? Que coisas são apenas coisas, são apenas imensos nadas, que servem para rigorosamente nada, que servem apenas para me atrapalhar o passo e me darem a sensação de vida importante, ocupada, cheia, ainda que de coisa nenhuma?
Hoje, a minha mochila pesa-me, está cheia e não é de boa coisa. Também por causa do Gusto. Por vezes, quando me atrevo a olhar para dentro da minha mochila com olhos de ver, sem ficções, sem pinturas embelezadoras da realidade, fico envergonhado. Porque adiei o inadiável, porque me quis convencer que não era assim tão importante, porque me convenci que era muito importante, porque deixei que o marfim corresse sem tomar uma decisão, sem assumir uma atitude, fugindo por entre os pingos da chuva, porque não fui suficientemente coerente para olhar a responsabilidade nos olhos... são momentos importantes, que fazem tão parte do que sou como aqueles em que sou orgulhosamente feliz nos meus gestos e nas minhas atitudes. São momentos que faço por esquecer, por varrer para debaixo do tapete, mas que volta e meia me revisitam e têm o condão de me por no lugar.
“Não podemos ignorar
que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de pessoas, o
abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias formas
de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de
encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e
proteger do que para unir e integrar.
(…) O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho
é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que um
programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados
para esta realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no
coração dos desafios como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em
qualquer cidade, melhora o cristão e fecunda a cidade.”
Evangelli Gaudium, 75
Nunca é fácil falar ou escrever do que nos mexe cá por
dentro. E o Espaço RAIZ mexe cá por dentro. Partilhar a vida com quem, para o
bem e para o mal, não tem filtros, para quem tudo é genuíno, todas as emoções e
reflexos estão sempre à flor da pele, deixa marcas profundas. Conquistar o
respeito e o carinho de quem se habituou a ser mantido nas bordas de uma
sociedade que teima em ser madrasta, é uma tarefa que implica uma entrega e uma
perseverança que não se compadece com caprichos momentâneos ou fugazes estados
de alma. Não que seja tarefa para super homens ou super mulheres, mas porque é
uma vida feita de avanços e recuos, onde cada dia é um dia, onde cada manhã é
uma oportunidade para recomeçar tudo de novo, como se não tivesse existido
ontem.
O Espaço RAIZ pretende ser - tem que ser! - justamente esse espaço
onde é permitido recomeçar sempre, todos os dias, a todas as horas, qualquer
que seja a falta cometida. Onde um castigo
- porque também os há – não pode durar mais que um reforço positivo,
para que cada um perceba que há uma outra forma de ser, de fazer, de se fazer,
que escapa às garras daqueles que, do outro lado da avenida, traficam a vida em
pequenos pacotes de dependência e miséria.
O Espaço RAIZ pretende ser – tem que ser! – um lugar onde as
pessoas se sintam seguras, acarinhadas, dignas de serem respeitadas e amadas.
Um lugar onde coisas tão básicas como a partilha das dificuldades e das
alegrias, o respeito pelo outro, a manutenção do espaço e até a preocupação com
a higiene - coisas que, em condições normais, acontecem no seio familiar - se
fazem quotidianas até encontrarem o seu lugar na normalidade do dia a dia.
O Espaço RAIZ pretende ser – tem que ser! – um lugar de
descoberta e de encontro, pessoal e comunitário, de trocas de experiências, de
aprendizagens mútuas, de olhares cruzados entre crianças, jovens, adultos e
idosos, por forma a se conseguirem ler uns nos outros, identificar uns nos
outros, conviver uns com os outros, numa (re)descoberta feita de muitas vidas
que, apesar de serem fisicamente tão próximas, são separadas por um mar de
dificuldades e conflitos.
Não conheço outra forma de tentar fazer isto tudo que não
seja o de meter a mão na massa, o de estar lá, o de partilhar as suas conversas
e brincadeiras, o de ir tentando, discretamente, com tempo, com muito tempo,
sem imposições, fazer com que acreditem em si e nas suas capacidades. Que
acreditem que ir à escola vale a pena, que estudar vale a pena, que trabalhar
vale a pena, que empenhar-se a fundo para crescer vale a pena, e que, cedo ou
tarde, todos nós, qualquer que seja a nossa circunstância pessoal, precisamos
de aprender a fazer e a respeitar compromissos. E, fundamentalmente, fazê-los
acreditar que são dignos de construir o seu futuro, que não estão condenados, à
partida, a viver nas bordas, a viver das bordas, e que, no lado certa da
avenida, encontram quem se preocupa genuinamente porque os ama genuinamente.
Texto escrito para a revista do Colégio
20131202
Quando, no âmbito de um trabalho para faculdade, me perguntou como me preparara para o Caminho, respondi que normalmente não me preparo: meto meia dúzia de coisas na mochila e deixo-me ir. Se a pergunta tivesse sido feita em relação a Taizé, a resposta teria sido idêntica. Nunca me preparo a sério para essas coisas: encho a mochila com o mínimo e abandono-me nos braços de quem me ama.
Este despojamento, que tanto bem me faz, não acontece, contudo, no meu quotidiano. Aí tenho sempre a sensação que tenho que pensar em tudo, que preparar tudo, que organizar tudo, por forma a não desapontar aqueles que contam comigo. E a cabeça vai enchendo, a vida vai enchendo, e nem a almofada serve de consolo porque é justamente quando pouso a cabeça na almofada que os acontecimentos passados e futuros me assaltam e perturbam o sono. Em vão, claro. Porque, por muito que me avie em terra, o mar alto é imprevisível e escapa com facilidade aos meus anseios e desígnios.
Há, nos tempos litúrgicos que vão pautando a vida na fé, uma sabedoria que mereceria uma muito maior atenção da minha parte. Uma sabedoria laboriosamente construída ao longo de séculos, alicerçada na vida por pessoas que intuíram o que seria melhor para nós, para o nosso ritmo de vida, para o nosso encontro connosco e com os outros. Este tempo do Advento, que nos pede uma paragem para podermos esvaziar os bolsos e encher as almas, é disso um excelente exemplo. Se quisermos, se a isso estivermos dispostos, podemos chegar ao Menino como Ele está, despojado, confiante, abandonado aos braços de quem O ama.
Por vezes penso que há qualquer coisa de muito contraditório nesta necessidade de nos despojarmos do que quer que seja. É quase insultuoso, como quando temos que fazer regime para não engordarmos. Na realidade, mais do que vivermos acima das nossas possibilidades, vivemos muito acima das nossas conveniências, do que é o melhor para nós e, lentamente, vamo-nos deixando enredar, como rã em lume brando. E os tempos litúrgicos, como o Advento ou a Quaresma, têm, pelo menos, o condão de tentar introduzir alguma racionalidade nesta nossa forma de vida, que é profundamente irracional. Irónico, não é?
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Bambora
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