20131021


Eu sei que é estúpido, mas nunca me vi como fisicamente frágil. Tive sempre a sensação que, fisicamente, era capaz de tudo. Poderia levar um certo tempo, poderia exigir um trino especial, mas não há nada que nunca tivesse conseguido. Talvez por isso tivesse uma altura em que gostasse tanto do ginásio: fazer exercícios de pernas com mais de 100 kgs dava uma enorme sensação de impunidade.

Aliás, a primeira vez que senti limitação física foi no Caminho. Cometi a sobranceria de não fazer qualquer preparação e o segundo dia custou-me horrores. Lembro-me dos últimos 5 kms desse dia como dos momentos em que mais tive que me superar. E que comecei a aperceber-me que já não tenho 20 aninhos.

Hoje, por sinal, fiquei de cama o dia todo. Gripe, penso eu, que destas coisas não percebo nada. Febre, dores nas articulações, intensíssima dor de cabeça e tonturas quando me ponho de pé. Nada de importante. O que importa mesmo é que, quando estou assim, vivo como que um regresso à infância. Não sei o que fazer, sinto-me completamente à mercê dos outros, e anseio pelas rápidas melhoras.

É vulgar dizer-se que a saúde é o melhor dos bens. Se salvaguardarmos a saúde daqueles que amamos - que é mais importante que a nossa - assino por baixo sem qualquer dúvida. Quando o corpo dói, quando não sentimos forças, quando nos encontramos limitados, é que damos valor ao que normalmente temos... e não agradecemos. É também nestas alturas que percebemos melhor aquelas pessoas que nos rodeiam e não estão já na flor da idade e de quem nos queixamos tanto por ouvirmos constantemente as suas queixas. Pessoas como a minha sogra, por exemplo, que hoje, mesmo a mancar, lá me serviu o almoço e o lanche com todo o carinho.

Valha-nos sermos uns para os outros.

20131018


Ontem à noite, enquanto íamos para casa, dizia que atravesso um período de verdadeira felicidade profissional. Corro como o caraças, os meus dias são demasiado curtos, mas tenho chegado à cama sempre com a sensação que foi um dia bom. Uma das minhas filhas disse que era espantoso que eu, depois do que estudei , trabalhei e sofri noutras áreas, me encontrasse finalmente a fazer o que eu faço.. e que adoro fazer!

Apesar de gostar muito de conversar com os meus filhos, de estar sempre atento aos acontecimentos das suas vidas - sobretudo à forma como vão lidando e superando os acontecimentos menos bons - apesar de eles me lançarem aqueles olhares que apenas os filhos lançam aos pais quando sabem que vem aí conselho moral, apesar de não conseguir - nem querer - evitar esse momentos de cima para baixo, sei bem que nada fala mais alto que o exemplo. O facto de os meus filhos terem sentido na pele, da forma mais dura, os efeitos do meu insucesso profissional e pessoal, o facto de eles terem escolhido estar sempre do meu lado, o facto de eles poderem ver, agora, como as coisas também podem resultar, o facto de eles terem experienciado já como podemos ser felizes correndo muito e trabalhando muito e estudando muito e dando muito, tudo isso tem sido uma verdadeira escola de vida para todos nós. Sabemos todos agora que sucesso e insucesso podem ser apenas meras palavras, se tivermos junto de nós aqueles que mais nos amam. Sabemos todos agora que, na vida, há altos e baixos, e que não podemos embandeirar em arco quando as coisas correm bem nem ficar nas covas quando correm mal. Sabemos agora que apenas viver no amor - ainda que não se fale nesses termos porque essa expressão é demasiado fatela - nos dá garantias de ter sucesso na vida.


20131010


O meu sogro, homem de parca formação mas de enorme visão - e que me topou logo que me pôs a vista em cima - achou sempre que eu falava demais, que tinha um lado basófias que lhe custava mito a engolir. E não se enganou.

No sábado fui buscar os tios velhinhos ao lar onde tinham ido fazer uma experiência. Era suposto ficarem lá um mês e não aguentaram sequer uma semana! Quando lá cheguei fomos todos visitar as instalações Não eram nada de especial, nem boas nem más, mas não foi isso o que me impressionou. O tio dizia insistentemente que não se via ninguém, que ninguém ia para a sala de jogos "3 bilhares, Zé, e ninguém vai para lá" que a biblioteca "com mais de 1500 livros!" estava sempre vazia "só lá tem um velhote que pega no Notícias de manhã e nunca mais o larga" e que, fora isso, não se via ninguém "nem nos jardins, nem nos parques, nem nos corredores". Como sempre, achava que ele estava a exagerar: não era possível que uma casa com mais de duzentos velhinhos estivesse assim tão vazia.

No sábado percebi.

Enquanto ele me andava a apresentar os cantos ao Lar vi muita gente, efectivamente, E não vi ninguém. Vi velhos e velhas encatrafiados em salas de estar, sentados em cadeiras de rodas ou em sofás gastos, a cabecear de sono, com o olhar ausente, enquanto a televisão debitava qualquer coisa à qual eles não ligavam nenhuma. Em cada sala estariam 6 ou 7 mas nenhum deles conversava, nenhum deles sequer reagia à medida que íamos passando, iam-se deixando estar. Vi montes deles na enfermaria "é duro, não é, Zé? Mas não podemos deixar de vir aqui para ver a realidade", completamente amorfos, sem dar por nada. à medida que íamos passando pelos corredores ele ia-me apontando as portas dos quartos fechadas "a este morreu-lhe a mulher...  esta, nunca a vi, nunca sai do quarto... este não faz nada sozinho... este está maluco, não diz coisa com coisa" numa sucessão infindável de misérias e, sobretudo, de solidões.

Francamente, nunca antes me tinha apercebido com tanta crueza como é possível estar tão só no meio de tanta gente! Aqueles velhos estão lá, sentados, permanentemente sentados, à espera que o tempo passe. Imagino-me no lugar deles e imagino o tempo - o Mestre Tempo, como pomposamente lhe chamo - com uma crueldade que não lhe conhecia, com uma impiedade que não lhe conhecia. Imagino-me no lugar deles, sem nada que me aqueça os dias, com as horas a sucederem-se à custa dos minutos, que vão devorando longos segundos, com cada manhã a ser irremediavelmente igual à manhã anterior, antecipando a fotocópia da manhã seguinte, e imagino-me a dar em doido.

Regressamos à sua casa e foi vê-los felizes da vida, a serem acolhidos pelo gato, pelo seu lar de sempre, por todos nós, a reganhar vida. Dão um trabalho do caraças, são mito chatos estão sempre a discutir, mas nessa noite dormimos todos melhor porque eles estavam lá, apenas duas casas acima das nossas.

Sempre disse que, quando fosse velho, gostaria de ir para um lar.

O meu sogro é que a sabia toda!

20131009


Há quanto tempo não te faço eu uma oração
Há quanto tempo não disponho do tempo
e da serenidade
para me encontrar contigo
Há quanto tempo não pego no teu tempo
- que eu penso sempre ser o meu tempo! -
para to restituir, livremente,
calmamente,
como quem pega numa cadeira e se senta à sombra moçambicana e deixa o olhar fluir
como quem pega num terraço
e lhe junta a lua
e deixa a noite fluir
Há quanto tempo não me encontro connosco
não converso connosco
não repouso o olhar em ti
e em mim
para interromper esta sensação de sofreguidão
que eu tanto detesto mas que me vicia, que me impele a prosseguir, que me faz correr, meio sonâmbulo, sem sequer me aperceber como deve ser da vida que passa por mim
e em mim
e de mim
e até mim
Há quanto tempo não me sento e
junto de ti
e em ti
te digo: ok. Chuta.
e me deixo estar, de olhos bem fechados
a escutar os carros que passam lá fora
a as crianças que brincam nos corredores
os sons e os sinais que são vida
que testemunham vida
e me descubro a dar-te graças pela vida
pela correria
pela sofreguidão com que vivo

Sinto a falta desse tempo
no entanto acredito
- quero acreditar? -
que a correria, a sofreguidão, o sonambulismo, esta sensação de estar a correr contra o tempo,
tem o teu nome
tem o teu sorriso
tem o teu apelo
no entanto acredito
- quero acreditar? -
que é por ti
e em ti
e em mim
e nos outros
que eu corro.

bom dia, pai

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...