20220718



Trabalho há tempo suficiente com malta nova para saber que as imagens que muitas vezes são projetadas não correspondem à verdade. Na verdade, não são nem anjos imaculados nem diabinhos à solta, são pessoas em construção num universo muitas vezes demasiado confuso e multidisciplinar para que eles consigam perceber o chão que pisam. Por isso, normalmente, no que toca a malta nova, tenho ambos os pés no chão. Não que não me deixe contagiar e entusiasmar e sonhar e projetar com eles. Pelo contrário, sou muitas vezes quem (ainda) despoleta essa alegria e esse voar para além do que lhes é dado a viver. Há miúdos, então, que pelas suas circunstâncias precisam muito mais de sonhar que de pão para a boca, que esse vão tendo, apesar de tudo. Sim, voo com eles e a partir deles. Muitas vezes. Mas sei que, na melhor das hipóteses, seremos andaimes, nada mais que isso. E que é justamente andaimes, o que deveremos ser. E andaimes unipessoais, feitos à medida de cada um e, mesmo com cada um, adaptáveis a cada circunstância. Quando lidamos com malta nova não há pronto a vestir e muito menos medidas definitivas. É importante por isso, que tenhamos ambos os pés no chão e acolhamos a montanha russa, que pode acontecer num mesmo dia. Ora têm uma atitude que nos faz encher de orgulho, ora têm uma outra que nos leva a perguntar como é possível tamanha barbaridade acontecer. 

E isto é, a meu ver, um sinal de respeito. Por cada um deles. É atendermos a quem vão sendo, a cada momento, sob determinada circunstância. Porque é com cada um deles, com cada circunstância que trabalhamos, é com essa realidade concreta dessa pessoa concreta que temos diante de nós. Não, não são anjos nem demónios, mas pessoas, com confusões e sentidos de humor, não raras vezes mais exacerbados que os dos adultos. Por isso não me parece, de todo, conveniente idealizá-los ou diabolizá-los - encarcerando-os numa qualquer etiqueta - mas trazê-los e às suas circunstâncias para a discussão do que se deve ser e do que não se deve ser. Porque é nessa realidade que ambos nos movemos: educadores e educandos. Estar a desvalorizar qualquer um desses fatores - educador, educando, circunstância em que a a relação acontece - é fazer histórias que poderão ser muito bonitas mas nada têm a haver coma  realidade. É sermos andaimes de construções de areia, que se desfazem logo que nos retiramos.


20220708


 
 
Começa-se a respirar um outro ar, neste nosso pequeno burgo que é o nosso local de trabalho. 
 
Há menos de um mês, chegava à sala dos professores, dizia bom dia e, no máximo, obtinha como resposta um ou dois grunhidos mais ou menos percetíveis. Eu, que não sou professor - e que nessas alturas vivo numa outra cadência - olhava e via tudo pressionado pelo tempo, pelos resultados, pelos projetos, pelas agendas. Ninguém falava com ninguém de outra coisa que não fosse correções e provas e notas e reuniões e pautas e escalas. Chegavam todos demasiado cedo e saiam todos demasiado tarde e, invariavelmente, era quase visível a olho nu o peso do sentimento de culpa de não terem tempo para aqueles que amam, porque sofriam na pele o paradoxo da sensação do abandono daqueles que amam em nome do seu cuidado. Não admira, por isso, a enormidade de caras fechas, algo zangadas até, com que me deparava todos os dias. 
 
E nós não somos assim. Não somos mesmo assim. 
 
Nestes últimos dias, passado o frenesim dos exames e das notas e das pautas e das reuniões já oiço rir na sala dos professores. Ainda se trabalha, claro, mas a pressão é já outra. Aqui e ali ouvem-se brincadeiras, combinam-se almoços, acertam-se saídas, e escuta-se até alguns ohhhs quando alguém, finalmente recuperado do sentimento de culpa,  mostra as fotos dos filhos, dos pais ou dos netos. Agora já respiramos vida, já sentimos vida, já somos vida. De novo. E isso é tão bom! Eu próprio já me fui sentando com um e com outro e conversando, por vezes durante escasso tempo, noutras vezes esquecendo o tempo, e fomos partilhando vivências e dificuldades e projetos para o próximo ano, porque na verdade temos imensa dificuldade em desligar e a nossa cabeça fervilha sempre de novos projetos e novos sonhos que se transformem em novos desafios e nos transformem com eles. E isso é tão bom!

Nenhum de nós é parafuso. Ou prego. Ou uma qualquer outra peça de um qualquer mecanismo que fique satisfeito apenas porque a máquina funciona bem e produz bons resultados. Nenhum de nós consegue ser máquina durante muito tempo. Por vezes permitimo-nos sê-lo, por pouco tempo, desligando-nos da imensidão que nos ajuda a ser quem somos. Por vezes até nos esquecemos que somos mais, que somos chamados a ser mais, e por vezes até confundimos tudo e achamos que esse mais a que somos chamados está ligado à produção quando na verdade está ligado ao ser, ao ser para os outros, ao ser com os outros. E é quando somos, quando verdadeiramente somos, com os outros e para os outros, é justamente aí, nesse momento, que sabemos como é ser feliz, como é cumprir esta imensidão que nos habita e a que somos chamados a habitar. E isso é tão bom!

20220704


 

Dê-se à miudagem um belíssimo dia de sol, uma piscina e uns escorregas, e teremos semeado as memórias de um dia absolutamente inesquecível. Sobretudo se nunca o fizeram antes.

Continuo a deixar que a realidade me surpreenda! "Deixo a caixa dos comprimidos do enjoo para a minha filha. Não sei se ela enjoa, porque nunca andou de autocarro nem de camioneta, mas leva de qualquer maneira. E se algum miúdo precisar, pode dar desses." Quando comentava isto, espantado pelo facto de uma miúda com 7 anos nunca ter andado de camioneta, fiquei ainda mais espantado quando soube que ela nunca viu o mar. O nosso Espaço RAIZ fica a pouco mais 1 km do das praias da Foz do Douro, e aquela miúda, que vive junto ao RAIZ, nunca viu o mar! Em 2022, neste país à beira mar plantado, há pessoas nascidas neste século que ainda não viram o mar!

Estas coisas provocam em mim o efeito necessário: coloco os pés no chão e abro os olhos, permitindo-me ver bem quem tenho diante de mim. E ainda bem que tudo isto sucedeu ainda antes do dia de hoje, do primeiro dia de colónias de uns miúdos que, fruto do COVID, nunca as tinham tido. Porque deu-me o privilégio de testemunhar o seu espanto, os seus gritos de alegria, a sua descoberta da água, o seu primeiro almoço com os amigos e, sobretudo, apreciar de perto os seus olhos lindos, abertos, cheios daquela ilusão que apenas se tem quando a vida vivida  ultrapassa a vida sonhada. Demasiadas vezes temos demasiadas coisas dadas por garantidas. Podermos espantar-nos com o espanto das crianças é um verdadeiro privilégio. É também por isso que adoro o que faço!

20220701


 

Apesar de tudo aquilo com que me deparo todos os dias, estranho bastante o mal. Não o mal por acidente, o que acontece inadvertidamente, sem querer, que é consequência de um qualquer deslize ou atitude menos refletida. Esse tem remendo, mais ou menos fácil, em função da verticalidade de quem o comete. Mas existe aquele mal, pensado, programado, intencional, profundamente desumano e desligado da vida, porque nem sequer animalesco é, mas a negação da própria vida. Sua ou dos outros. E esse mal existe. É-me muitas vezes inimaginável. Mas por vezes encontro-o. Olhos nos olhos. E desarma-me.

Eu estou longe de viver numa bolha ou num conto de fadas. Como acontece com qualquer pessoa minimamente vivida, eu conheço a dor, provocada e sentida, a desilusão, profunda ou passageira, a falsidade (com a qual tenho tremenda dificuldade em lidar), que deixa sempre marcas profundas, e tantas outras formas engenhosas de fazer mal. Sei como o mal habita as margens, quer de cada um de nós, quer da sociedade, de forma mais ou menos insidiosa, mais ou menos declarada, mais ou menos permitida ou resultante das circunstâncias que a todos nós condicionam.

Sei disso tudo, mas raramente me deparo com uma pessoa má. Porque a verdade é que nós fazemos coisas más mas dificilmente somos intrinsecamente maus. Mesmo se fazemos essas coisas más com relativa frequência. Numa das margens do meu trabalho conheço muita gente assim, que não conhece limites, que não tem noção clara do bom e do mau, que é muito mais impulsiva que racional, mas que, quando confrontado com o mal que fez, pede desculpa - porque sente culpa - ainda que passado um par de dias esteja a fazer a mesma coisa com a mesma impulsividade. Normalmente o trabalho a ser feito com pessoas assim é ensinar como podem ser racionais, como podem ponderar os seus atos e as suas palavras antes de, com eles, agredir os outros. E normalmente - com muito tempo e muita paciência e muita oportunidade para recomeçar - conseguem-se bons resultados. Na outra margem, curiosamente, é tudo mais requintado, mais frio e calculista. E mais difícil de contrariar.

Mas pessoas más, mesmo más, que pensam, prepararam, maquinam o mal que fazem antecipando a dor provocada, desejando-a, essas são raras de encontrar. Mas não me são totalmente estranhas, também. E, quando as encontro, abalam-me. As certezas, as convicções, as reações. E isso não é bom. Porque me colocam mais perto de responder na mesma moeda.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...