20220429

 

Há já muito tempo que abandonei a pretensão de ser percebido na minha maneira de amar. Cada um terá a sua, fruto do seu entorno pessoal, do amor e do desamor que experienciou, às vezes com dor, outras com inusitada felicidade, e eu, claro, não escapo à regra. 

Eu amo com pudor. 

O amor é uma porta que se abre apenas por dentro, que exige um consentimento e uma disponibilidade interior que nada nem situação alguma consegue forçar. É um diálogo, mútuo, íntimo, profundo, e porque é diálogo é propício a malentendidos, que, porque é profundo, são sempre dolorosos, que, porque são íntimos, nem sempre são portadores da clareza que facilmente tudo resolveria no amor. Há todo um cuidado, revestido de atenção, que se exige no amor. Um constante lidar com pinças onde as palavras, os gestos, as atitudes, os olhares, adquirem um peso que apenas no amor é o seu, específico, exclusivo, absoluto. A forma como olho, como falo, como escuto, como me entrego, a quem amo, é por isso diferente, também dependente da relação específica que tenho com quem amo. Não se ama da mesma maneira os pais e os filhos, os amigos de longa data e os de ocasião, e mesmo de entre todos estes, cada pessoa, cada relação tem uma vida própria que resulta da nossa história comum, da nossa partilha, da interioridade que nos habita.

Eu acredito que é perfeitamente possível amar apesar da distância física. Como não? Alguns dos meus filhos estão fora há algum tempo; não visito frequentemente os meus pais e os meus irmãos; raramente vejo alguns dos meus amigos mais perenes; não sou de estar sempre a telefonar e a combinar coisas e, com toda a sinceridade, prezo muito o meu espaço e o meu silêncio e a minha necessidade de não fazer sala, que normalmente carecem de uma urgência maior que a de me ver rodeado de pessoas, mesmo as que amo. Claro que adoro quando estamos na galhofa à volta da mesa, claro que preciso do encontro dos olhares, claro que o meu coração apenas sossega convenientemente quando vou sabendo que estão bem, que são felizes e que vivem as suas vidas de peito aberto. E claro que sei que, ao mínimo sinal, corremos todos uns para os outros sem qualquer reserva ou questão. Mas é muito bom quando amamos sem mútua dependência. Absolutamente de borla.

E termos a consciência que, por muito que amemos, não possuímos. Nunca.

20220425


Não é todos os dias que testemunho o nascimento de Deus em alguém.

Demasiadas vezes tenho Deus como garantidamente certo. Mesmo eu, que vivo imerso por entre pessoas para quem a referência mais imediata de Jesus é a do treinador de futebol, esqueço-me frequentemente que Deus é um habitante desconhecido em tantas pessoas das comunidades que habito. Este fim de semana foi de Rumos: uma caminhada de Ansião a Fátima por entre aldeias e caminhos de santiago entrecortadas por dinâmicas de reflexão e oração. Connosco, pela primeira vez, foram alguns miúdos do RAIZ para quem tudo aquilo era novo: o caminho, as aldeias, as paisagens, as reflexões, mas sobretudo as orações. Durante a primeira - feita logo no arranque - só se conseguiam rir de espanto e nervosismo: tudo era estranheza e sentiam-se peixes fora de água. Pouco tempo depois já no caminho, conversamos: "stor, eu não sei rezar, nunca rezei". "Não te preocupes, não tens que fazer nada, nem responder: limita-te a ficar em silêncio e a escutar. Se ajudar, fecha os olhos." Em cada reflexão, em cada oração, a cada passo, fui tendo-os debaixo de olho. No final do dia já não se riam, no dia seguinte já cantavam. Quando chegamos a Fátima entrei no recinto com dois deles. Testemunhar o seu espanto foi maravilhoso: de olhos esbugalhados, boca aberta, saiu-lhes um "isto é tão grande! Tem tanta gente!". Fui explicando o que era aquele lugar, porque estavam tantas pessoas vindas de tão longe, porque estávamos nós próprios ali. Sem grandes teorias, disponibilizando apenas as pistas fundamentais para se sentirem acolhidos na casa da Mãe. 

E louvei a Deus!

Eu já fiz missão em Moçambique. Sei por isso como é importante que alguns de nós tenham a coragem de ir para longe. Mas, mesmo naquelas (para mim) recônditas terras de Quelimane, nunca tinha sido parteiro de Deus. Demasiadas vezes tenho Deus como garantidamente certo. Demasiadas vezes esqueço que há pessoas que, olhando para a sua vida, a veem como alguns viram o túmulo: vazio de Deus. Iludidos pela aparência das circunstâncias, veem apenas que Ele não está lá. E não sabem que é em si que Deus habita. Porque nunca ninguém lhes disse isso. Porque nunca ninguém lhes forneceu a chave que permite sentir e viver a partir dessa novidade. Porque eu, conhecendo-os e conhecendo-O, não os apresentei mutuamente. E essa é, também, minha responsabilidade.

20220405

 
 
Espanto dos espantos: todos nós somos diferentes em função da companhia. Talvez não na essência - embora por vezes aconteça - mas na forma, com certeza que sim. Não faria sentido, aliás, se assim não fosse. Se não tivéssemos pessoas especiais e momentos especiais não teríamos amigos nem namorados nem casamentos nem confidentes e seria tudo a mesma coisa. E sabemos como isso não acontece. E sabemos também que não falamos com todos da mesma maneira, não dizemos a todos o mesmo e muito menos com a mesma profundidade. E isso não é menosprezo, mas escolha, o que torna as nossas pessoas muito especiais. As minhas são. E mesmo essas não se deparam com a mesma versão de mim. Até por causa das circunstâncias! Eu, por exemplo, tenho extraordinária facilidade em me comover enquanto testemunha direta de uma qualquer dor e, pelo contrário, tenho enorme dificuldade em agir à distância. Ainda agora, com a pandemia e, depois, a guerra da Ucrânia, confirmei que me é muito mais natural e imediato entregar-me a alguém para quem trabalho e passa dificuldades, que mobilizar-me para enviar bens ou dinheiro ou a mim próprio para uma situação que se passa longe daqui e com pessoas que não conheço. Se racionalizar a questão até chego lá, claro, e sei que é horrível, e acabo por me comover (sempre no sentido de mover com) mas nunca é um processo imediato. Por isso, é natural que, nas conversas com os meus filhos, eles por vezes pensem que o pai deles é alguém que se preocupa com os outros e noutras alturas, em função do que estamos a discutir, que eu não quero saber deles para nada. Quer isto dizer que me falta a justa medida, a perspetiva global, que sou inconstante e inconsistente? Talvez. Não digo que não. Mas também por isso me são tão importantes aqueles que amo, aqueles com quem converso, aqueles com quem aprendo, aqueles que leio e observo, todos os dias. Porque encontro neles o fiel da minha balança, a minha medida, as pessoas com quem me meço na sempre presente tentativa de descortinar o meu lugar. Por isso eu chego, invariavelmente, à conclusão, que sou melhor pessoa com as minhas pessoas que sozinho. E isso, para além de ser muito bom, é uma sorte do caraças. Quando me imagino noutro contexto... não seria bonito!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...