20220222

 

Por vezes há coisas que dizemos e ouvimos dizer que soam a mais do mesmo, a verbo para encher meninos, como o meu pai me dizia. Outras, porém, constituem oportunidades para a desconstrução dos nossos próprios conceitos. E eu adoro quando isso acontece.

Há algum tempo, fui convidado para falar em algumas turmas acerca do que é esta coisa de viver com fé. Como eu não sei bem o que isso seja - nem tenha capacidade de dizer o que quer que seja acerca do assunto - preferi falar do que é viver com Deus dentro. Porque essas são certezas: a que sou habitado por Ele e a que quero que Ele me habite, mas, mais que isso, que essa cohabitação tem consequências práticas na minha vida e na dos que me rodeiam. E eu gosto de alicerçar o que digo naquilo que vivo.

Numa das últimas aulas, uma aluna, provavelmente algo insatisfeita por eu não ter abordado convenientemente a fé (a propósito, engana-se redondamente quem acha que os miúdos hoje não querem saber da fé para nada), perguntou-me o que era a fé para mim. Depois de hesitar - não contava com aquela pergunta, tão direta - falei-lhe de um episódio marcante da minha vida, enquanto pai, em que a minha filha mais velha correu, verdadeiramente, risco de vida. Liguei, portanto, automaticamente, a fé à eventualidade da morte de um filho, naquela que eu calculo que seja, de muito longe, a experiência-limite mais dolorosa de todas. Os miúdos perceberam a ideia, mas eu, que sou como as vacas - quando as ideias chegam eu meto-as cá dentro e só depois é que me dou tempo para as ruminar - andei com aquela questão a incomodar-me durante alguns dias. E recordei-me de uma conversa que tive algures em 1991 com alguém que, perante a notícia que eu iria ser pai, me disse que a minha vida jamais seria a mesma porque nada há de mais definitivo que ter um filho.

Hoje voltei a falar noutra turma. E, curiosamente, hoje, no final, foi-me colocada a mesmíssima questão. Então lá voltei a referir o episódio com a minha filha, mas desta vez tive a oportunidade de dar um outro rumo, feito de um pormaior que, na verdade, tudo muda. Na realidade, estamos todos habituados a ouvir que nada há de mais certo e definitivo que a morte e no entanto, para nós, para aqueles que acreditam, para aqueles que têm fé, nada há de mais certo e definitivo que a vida. Poderá parecer um mero jogo de palavras mas, na verdade, há uma imensidão de novidade nesta certeza. Quando aceitamos a vida - e não a morte - como aquilo que é verdadeiramente definitivo, a nossa própria vida, a nossa herança, o nosso legado, ganham uma nova roupagem, e nós uma nova responsabilidade. E um outro sentido.

E fiquei feliz. Triplamente feliz. Primeiro, porque uma simples questão permitiu-me desconstruir uma ideia feita, tantas vezes badalada. Depois, pela recordação dessa verdade sempre nova - e são tantas as vezes que preciso de ser recordado das verdades mais simples! Finalmente, pela oportunidade de fazer perceber de forma tão natural que o nosso é, verdadeiramente, o Deus da Vida!

Já valeu a pena!

Sentar e escutar, acolher, com o coração aberto, um outro coração, eventualmente ferido, eventualmente magoado, eventualmente perdido, ser admitido na dor dos outros, é um privilégio. Pena é que eu nem sempre tenha a serenidade, a abertura e a coragem de me dispor a fazê-lo.

20220209

 


Quando estou com a cabeça cheia, assoberbada, recorro ao básico, ao primeiro. Passeio-me no Parque da Cidade, sento-me junto ao mar, deixo que a brisa me envolva e o som das ondas me invada. Abandono-me. Não faço qualquer esforço para calar o que a cabeça me grita mas, pelo contrário, deixo fluir, até que a sua voz enrouqueça e atenue, lentamente, recuperando a sua normal tonalidade para que, finalmente, abracemos juntos o silêncio. 

O abandono tem muito de confiança, de deixar correr, de permitir a passagem do controlo. No meu caso, decorre da necessidade de regresso. À minha finitude, à minha pequenez, ao meu lugar. É um reganhar de consciência, de pertença, de reconhecimento. Recordo-me que não posso tudo e por isso abandono-me, conscientemente, a quem sei que tudo pode. Remeto-me ao conforto do silêncio profundo, que acontece no lugar onde, calculo, estará colocada a alma. Este silêncio que não é ausência mas inelutável presença, admitida, concedida, desejada intensamente para ser saboreada com intensidade semelhante. E habito, temporariamente, num tempo que pede meças à eternidade, um prenhe silêncio. 

O abandono, este abandono, resulta por isso em encontro. Um encontro que é íntimo, profundo, que seria quase secreto se não se desse a inevitabilidade do transbordo. Um encontro que é de mim para comigo, certamente, mas apenas porque aí habita Deus. Encontro-me sobretudo com a beleza, como se tivesse sido necessário varrer a alma para que nela coubessem as coisas belas da vida. Sendo o mesmo, regresso outro. Mais atento, mais sensível, mais vivo, mais permeável aos sons e ao sol que me invade o corpo e aquece a alma. Mais disposto à escuta, ao abraço, ao reconhecimento. Regresso mais feliz, refeito, reencontrado, acolhido. 

E pronto para acolher o que quer que o dia tenha para me oferecer.

 

20220207

 

Tenho falado do Encontro de Cristo na minha vida em várias turmas. 

Mais valia ler-lhes isto que encontrei hoje:

 

Maria Madalena - Sobre o primeiro encontro com Jesus

Vi-o pela primeira vez em junho. Ele caminhava pelas plantações de trigo, quando passei por perto com minhas criadas. Ele estava só. O ritmo de seus passos não se comparava com o de outros homens, e jamais vi um corpo mover-se como o seu. Homens não pisam a terra daquela maneira. Até agora não sei se ele ia rápido ou devagar. Minhas criadas apontaram para ele, cochichando timidamente umas com as outras. Eu parei por um momento e levantei o braço para saudá-lo, mas ele não virou o rosto, nem sequer me olhou. Como o odiei nesse momento! Retraí-me, fria como se tivesse atravessado uma nevasca. Eu tremia.

Naquela noite, sonhei com ele. Contaram-me depois que cheguei a gritar enquanto dormia e que meu sono havia sido agitado.

Foi em agosto que voltei a vê-lo, pela janela. Ele estava sentado à sombra de um cipreste, do outro lado de meu jardim, imóvel, como se tivesse sido esculpido em pedra, feito as estátuas de Antioquia e outras cidades do Norte. Minha escrava egípcia veio até mim e disse:

– Aquele homem está aqui de novo. Está sentado em teu jardim.”

Olhei para ele e minha alma estremeceu, porque ele era muito bonito. Seu corpo era singular, cada parte parecia amar as outras partes. Então, vesti meu traje de Damasco, saí de casa e fui em sua direção. Era minha solidão ou sua fragrância o que me atraía nele? Eram meus olhos sedentos que ansiavam por beleza ou sua beleza que buscava a luz de meus olhos? Até agora não sei.

Aproximei-me dele com minhas roupas perfumadas e minhas sandálias douradas, as sandálias que o capitão romano tinha me dado. Essas sandálias mesmo. Já à sua frente, disse-lhe:

– Bom dia.

– Bom dia, Maria – respondeu ele. E me olhou, com aqueles olhos noturnos, de um modo que nenhum homem jamais tinha me olhado. De repente, senti-me nua e envergonhada. Mas ele só havia dito isso: “Bom dia”.

– Não queres vir à minha casa? – perguntei.

E ele respondeu:

– Não estou já em tua casa?

No momento, não entendi o que ele queria dizer com aquilo, mas agora entendo.

– Não queres partilhar o pão e o vinho comigo? – perguntei.

– Sim, Maria, mas não agora.

Não agora, não agora, disse ele. E era a voz do mar que se fazia ouvir nessas duas palavras, a voz do vento e a voz das árvores. E quando ele pronunciou essas duas palavras, a vida falou com a morte. Pois saiba, meu amigo, eu estava morta. Eu era uma mulher divorciada de sua alma. Vivia afastada desse ser que vês agora. Pertencia a todos os homens e a nenhum. Chamavam-me de prostituta, uma mulher possuída por sete demônios. Fui amaldiçoada e era invejada. Mas quando seus olhos alvorecentes olharam nos meus, todas as estrelas de minha noite se apagaram, e eu me tornei Maria, somente Maria, uma mulher perdida para o mundo que tinha conhecido, encontrando-se em novos lugares.

– Vem à minha casa partilhar o pão e o vinho comigo – repeti o convite.

– Por que me pedes que seja teu convidado? – ele quis saber.

– Imploro-te que venhas à minha casa – respondi. E tudo o que era relva em mim e tudo o que em mim era céu clamava por ele.

Então, ele me olhou, com os olhos de meio-dia, e disse:

– Tu tens muitos amantes, mas apenas eu te amo de verdade. Os outros homens amam a si mesmos quando estão perto de ti. Eu te amo por ti mesma. Os outros homens veem em ti uma beleza que desaparecerá antes deles. Mas eu vejo em ti uma beleza permanente, e, no outono de teus dias, essa beleza não precisará ter medo de se olhar no espelho, e ela não será abalada. Só eu amo o que não se pode ver em ti.

Nesse momento, ele disse, com a voz baixa:

– Vai agora. Se este cipreste é teu e não queres que me sente à sua sombra, seguirei meu caminho.

– Mestre, vem à minha casa – insisti. – Tenho incenso para queimar para ti e uma bacia de prata para lavar teus pés. És um estrangeiro, mas não um estranho. Suplico-te: vem à minha casa.

Ele se levantou, olhou para mim como as estações olham para os campos e sorriu.

– Todos os homens te amam pelo que eles são – disse mais uma vez. – Eu te amo pelo que tu és.

E foi embora.

Nenhum outro homem jamais andou como ele andava. Foi uma brisa formada ali no meu jardim que se encaminhou para o oeste? Ou terá sido um vendaval que abala todos os alicerces?

Eu não sabia, mas naquele mesmo dia o ocaso de seus olhos matou o dragão em mim e me tornei mulher, me tornei Maria: Maria Madalena.”

 

Excerto de Jesus, o filho do homem, por Gibran Khalil Gibran

20220202

 

Ontem sabia que teria um dia cheio. No entanto, não era essa a mossa que sentia: dias cheios são o pão nosso de cada um dos meus dias e dou Graças por isso. O que me fazia mossa era a ânsia da normalidade que, há muito tempo, teima em primar pela ausência. Eu sempre gostei da normalidade da rotina, de saber, no início de cada manhã, com o que vou contar e antecipar os trabalhos, os temas, as reações. Por causa disso, dessa ilusão do controlo, os meus primeiros 5 segundos depois de uma qualquer surpresa dificilmente são positivos: reajo sempre com protesto. Depois acalmo, racionalizo, incorporo e encaixo-me no que a vida me dá. Mas, entretanto, esses 5 segundos já estiveram lá e foram visíveis para o autor da surpresa. E isso não costuma ser bom. Por outro lado, não gosto da queixa do antes é que era bom ou do éramos tão felizes e não sabíamos. Apesar das imensas memórias que me habitam - e que eu prezo, independentemente de me fazerem sorrir ou sofrer - creio que nunca fui um saudosista. O melhor tempo é sempre este, agora, aqui, e nestas circunstâncias. Faço por não ser um revisionista da minha própria história e, sobretudo, por tentar fazer e ser o melhor em cada altura, em cada circunstância, sabendo sempre que esta é uma batalha por mim invariavelmente perdida, mas que reflete o que vou conseguindo ser, em cada momento, em cada passo que dou. Leituras posteriores implicam sempre algum esquecimento das circunstâncias concretas que me levaram a ser e a agir de determinada maneira e isso implica sempre uma culpa que me é tão intrínseca que faço por menorizar sob pena de ficar tolhido e são sair do lugar. 

Mas gostava muito de regressar à normalidade. De saber, no início de cada manhã, com o que poderia contar, com quem poderia contar, da tranquilidade da antecipação do desafio e a segurança que o desafio será mais ou menos aquele e não o que é ditado pela pandemia. Há um cansaço generalizado no ar. Um cansaço que é físico - são tantos os que ficaram com repercussões do COVID! - mas também psicológico, que não consegue já ser colmatado por uma mera escapadela ou emoção passageira. Sim, são estas as circunstâncias em que somos chamados a dar o nosso melhor. No entanto, ilusoriamente, temos tentado viver na normalidade, como se estes não fossem tempos extraordinários, de um extraordinário desgaste. Mantemos o ritmo, mantemos as agendas, mantemos os procedimentos, forçando uma realidade que apenas acontece nas nossas expectativas. Fingimos que conseguiremos como sempre conseguimos. Pintamos com cores bonitas o que não conseguimos para iludir os nossos dias. Temo que, como numa maratona, mesmo que consigamos chegar à meta, estejamos todos no nosso limite. Sem forças, sem energias, sem ilusões. Desaproveitando a normalidade, se e quando chegar.

20220201

 

Iniciei este ano um novo ciclo de catequese com o 7º ano. Os nossos inícios nestas coisas nunca são fáceis. Por um lado, preciso sempre de simplificar a minha mensagem e, sobretudo a maneira como faço catequese, onde aplico de forma ainda mais incisiva o que vivo na vida: gosto mais de perguntas que de respostas. E quase todos os miúdos, naquela altura, sentem-se muito mais confortáveis com respostas - se possível simplificadas até à sua infantilização - que com as perguntas que a fé e a vida vão suscitando dentro de si. No entanto, acredito que eles não são um produto acabado a quem se distribui conceitos mais ou menos religiosos - para mais num contexto de escola como o nosso - mas caminhantes, no princípio de uma longa caminhada, para a qual saber fazer-se perguntas a si próprio é absolutamente fundamental.

Temos vindo a falar do Reino de Deus, de como está bem mais próximo de todos nós do que imaginamos, de como depende bem mais das ações de cada um de nós do que desejaríamos. Depois de termos visto, na Bíblia, como Jesus fazia o Reino acontecer - restaurando a dignidade daqueles que não se sentiam dignos - e de falarmos do concreto das suas vidas, apresentei-lhes ontem um filme curto que pode ser encontrado com facilidade na internet: o Circo das Borboletas. Nesse filme, a única altura em que a palavra Deus é referida é numa acusação que tem tanto de negativa como de quase quotidiana. Fora isso, em momento algum se refere o nome de Deus, de Jesus, de Reino, ou qualquer coisa sequer semelhante... e no entanto... Naturalmente, o filme não é apresentado assim, cru, sem mastigação posterior, sem muita conversa e, sobretudo, sem muita reflexão acerca do que é o Reino e do que Deus espera de cada um de nós para a construção do Reino. E apenas essa reflexão é verdadeiramente importante, na medida em que despertar em cada um deles a necessidade de condicionar a ação pelo encontro pessoal com Jesus.

Porque é apenas para isso que faço catequese: para que esse encontro profundo de Cristo com cada um possa acontecer.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...