20220127


- Como é que fazes com que o barco não caia?
- Sonho com muita força. A força de vontade segura-nos.
- E como é que é possível fazer com que o céu seja mar?
- Cada um escolhe onde quer navegar.
In lado.a.lado (https://www.facebook.com/coisasdavida.vidadascoisas)

Levei (?, levo?) muito tempo a aceitar-me e ao meu percurso de vida. 

Quando percorro a minha história, raramente as coisas são claras. Acontece-me frequentemente - ou acontecia-me, porque deixei de o fazer - provocar olhares duvidosos quando partilho memórias de infância com os meus pais ou os meus irmãos. Eu, que considero ter uma memória prodigiosamente pormenorizada no que a momentos marcantes da minha infância diz respeito - no que se refere a outros acontecimentos porventura menos significativos é um desastre - chego a duvidar se aqueles cheiros, aqueles momentos, aquelas sensações aconteceram mesmo ou foram produzidos algures por entre as imensas e precoces leituras e uma capacidade (necessidade?) de sonhar que, ainda hoje, é muito forte em mim. No entanto, recordo com muita clareza pormenores de conversas, físicos, de situações, que não poderia ter lido em lado nenhum nem fantasiei mas me marcaram profundamente, positiva ou negativamente.

A verdade é que sonho. Sempre! Creio que será mais ou menos comum, mais ou menos consciente, que todas as pessoas sonham. Mas quando olho para trás consigo perceber, ainda que tenuemente, que no meu caso o sonho sempre foi o princípio, sempre foi o impulso, a catapulta, sempre se revestiu de inconformismo e de desafio. A verdade, é que eu preciso de sonhar. Preciso de navegar. Sempre. Por vezes na solidez do chão que piso; por vezes ao sabor do mar que navego; por vezes no céu que me eleva.

Levei muito tempo a aceitar isto em mim. Vai sendo, progressiva e lentamente, menos penoso. Para mim, não para quem me ama. Na verdade, esse é o preço a pagar por quem me ama: tem sempre mais sonho que segurança. Mas não consigo (já não quero?) ser outro senão aquele que verdadeiramente sou.

 

20220126

 

Numa das minhas atividades dos DRs uma das questões que um jogo colocava era "para mim, amar é...". Era a questão que eles mais temiam porque, por um lado, nunca tinham pensado a sério nisso e, por outro, se o tivessem pensado, ficavam algo inibidos de o dizer em voz alta. Naturalmente, as questões que iam sendo sorteadas não eram apenas colocadas aos alunos, eram também colocadas a mim próprio, que sempre gostei mais do processo de abertura que envolve as perguntas que do fechamento aparente das respostas. E esta, inevitavelmente, é daquelas que mais me inquietam desde sempre. 

Eu dizia aos miúdos que amar tem muito pouco a haver com gostar, mesmo o gostar muito. E depois explicava-lhes que, nas nossas atividades juntos dos sem-abrigo (não gosto do eufemismo dos "amigos de rua"), ou do Raiz, não precisamos de gostar deles para os amarmos. Sim, o que fazemos é por amor, ainda que não os conheçamos e, mais importante ainda, ainda que, conhecendo-os, não gostemos nada deles e das suas escolhas. Porque amar é de outro campeonato.

Provavelmente, o verbo que melhor rima com amar é cuidar. Cuidar é um verbo ativo, efetivo, feito de proximidade interior, de genuína preocupação, de incómodo provocado. Sim, nós podemos nem conhecer bem aqueles de quem cuidamos ou, conhecendo-os, podemos até nem gostar particularmente deles, mas porque amamos, há algo que não nos permite ficar completos, inteiros, se não fizermos algo de concreto para, pelo menos, aliviar a sua situação. Cuidar também raramente tem a haver com proximidade física. Os meus filhos já não vivem todos nas minhas proximidades e ainda assim são cuidados, são parte inalienável do meu quotidiano. Eu próprio nunca fui o tipo de filho ou de irmão que está em permanente contacto com os seus, mas a vida já provou à saciedade que nos cuidamos mutuamente sem questionamentos ou hesitações. E com os amigos, aqueles que montaram tenda cá por dentro, há também esse mútuo cuidado, apesar de a vida se ter encarregado de nos separar fisicamente. 

Mas este cuidar não abona a meu favor. Na verdade, é-me quase sempre muito mais natural a ideia de amar que a necessidade de cuidar. E perco-me algumas vezes nessa ideia, bonita, linda, que me faz permanecer algumas vezes lá em cima, numa realidade virtual, que me impede de olhar com olhos de ver a realidade do que se passa à minha volta e daqueles que amo. Invariavelmente, necessito de um chamamento à realidade, a por os pés no chão, a tornar mais efetivo esse amor, a cuidar, e esse desinstalar-me das nuvens quase nunca é feito sem alguma dor. E sem imenso custo. No meu percurso, houve um tempo em que a esse acordar de espanto para o que se passa realmente à minha volta se sucedia um terrível sentimento de culpa. No entanto, à medida que vou vivendo, vou percebendo que essa culpa, para além de inútil, é errada. Por isso, agora, prefiro agradecer. A todos aqueles que, assim ou assado, motivados por isto ou por aquilo, me forçam a ver aquilo que sozinho não consigo ver. Ainda que doa, ainda que proteste, ainda que resista à desinstalação de mim próprio. É que, com eles, por causa deles, sou melhor pessoa.

20220117

 

Tenho o verdadeiro privilégio de andar a discutir o Sínodo em vários fóruns. Eu levo estas coisas muito a sério. Como católico, claro, mas sobretudo como pai e educador católico. Durante anos, ao falar da Igreja, dizia a quem me quisesse ouvir que vivemos tempos entusiasmantes na Igreja. Depois do balde de água fria do pós Concílio Vaticano II, em que, quase sempre por impreparação e excesso de reverencia, permitimos que ficasse quase tudo mais ou menos na mesma, temos agora uma oportunidade de retomar o caminho, porventura de uma forma mais aguerrida, mais consciente, de uma Igreja mais próxima do Evangelho. 

Eu amo esta Igreja. Sim, esta mesma, a católica apostólica e romana cujo credo rezamos ao domingo. Amo-a, pertenço-lhe de cabeça erguida, com toda a consciência  das suas / nossas falhas e pecados e fragilidades. Sim, eu conheço bem a história da Igreja e a dos homens e sei que cometemos horrores, que condenamos pessoas e que fomos / somos uma muitíssimo pálida imagem de Jesus Cristo. Sim, eu sei que há montes de pessoas com uma fé maior e mais esclarecida que a minha, com um conhecimento muito mais profundo que o meu, com vidas muito mais condizentes que a minha e que, todos os dias, são afastadas da comunhão ou da plena ação de acordo com os seus dons e desejo profundo de os exercer dentro e não à margem da Igreja. Sim, eu sei que, juntos, formamos um só povo, e esse povo tem que ter lugar para todos os que querem, de boa vontade, contribuir para que o Reino aconteça já hoje, aqui, agora, ainda que não na sua plenitude.

Eu sei disso tudo e por isso estou tão entusiasmado. Porque não podemos perder a oportunidade. Todos nós. Porque se a Igreja fosse perfeita não precisaria de sínodos ou de concílios ou de escutar as pessoas. Porque se a Igreja não pudesse ser discutida por todos nós, batizados, não seria a Igreja de um Cristo que acolhe, mas a de um deus ditador. Porque se a Igreja não fosse a dos homens e mulheres batizados seria apenas a da hierarquia, com poderes discricionários, como se houvesse uma ordem específica de dignidade pré-estabelecida (e eu acredito na necessidade da hierarquia). Porque, por tudo isto e mais uma imensidão de outras coisas, temos o dever de ir ao encontro, de escutar, de clarear, de transmitir, de caminharmos, todos, juntos, para que esta seja uma Igreja de todos, para todos e com todos os que queiram, de coração aberto, ser parte dela. 

Vamos a isso.

20220114

  

Shikata ga nai: a antiga sabedoria japonesa de deixar as coisas acontecerem como elas acontecem

Gosto imenso quando a vida vem ter comigo. Todos os dias percorro leituras muito dispersas, na sua origem e formato, nas suas temáticas, no mundo muito particular que cada leitura - sobretudo se bem escrita - transporta consigo. Imensas vezes, fruto da idade e da profusão das leituras, daí não me vem grande novidade. Apesar de aproveitar um pouco aqui e acolá como uma ave que debica sementes num parque - sim, eu sei que migalhinhas é pão, mas eu sou um homem de sustento - vai sendo cada vez menos comum encontrar algo que se me ajuste, em cada circunstância, como um fato de alta costura. Mas às vezes, quando os astros se alinham - ou quando eu mais preciso que eles se alinhem - acontece. E hoje aconteceu. 

Gosto da ideia de deixar a vida fluir, como se de um rio se tratasse, e nele mergulhássemos, de corpo inteiro. Gosto da ideia de haver um antes e um depois de cada um de nós, de sermos, simultaneamente, precursores e herdeiros. Gosto da ideia de mergulharmos em águas vindas de outros em cuja sabedoria mais ou menos reconhecida somos banhados. Gosto da ideia da pequenez da diferença que fazemos nesse rio - que depois de nós passa a ser algo diferente, mas será sempre um rio, retirando-nos o peso excessivo que por vezes, por soberba, nos atribuímos. Gosto da ideia de a vida volta e meia nos apresentar como melhor solução o deitarmo-nos de costas, relaxarmos, seguirmos a corrente e deixarmos que a vida nos conduza, olhando o céu, recuperando energias, aproveitando a viagem, confiando naqueles que nos amam e nos cuidam.

Algumas vezes, deixar fluir é rendição, daquela que nasce do cansaço de quem não pode mais. Outras, porém, será sabedoria, daquela que nasce da consciência humilde de quem sabe que não se pode tudo. O que as separa? A dor, provavelmente. Se é apenas minha, eventualmente estarei no caminho certo. Se é infligida, se a provoco, sobretudo se é reiterada, será, então, eventualmente, tempo de perder o medo de questionar, e deixar de insistir, e largar. 

E deixar que a vida aconteça.

https://www.pensarcontemporaneo.com/shikata-ga-nai-a-antiga-sabedoria-japonesa-de-deixar-as-coisas-acontecerem-como-elas-acontecem/


20220110

 


"Deixa que o toque do amor de Deus transforme o teu emprego em missão. A que lugar, a que realidades, está Deus a chamar-te?"

Quem faz o que eu faço com quem eu faço para quem o fazemos só o pode fazer com espírito de missão. Claro que tudo pode ser feito com funcionarismo - desligado de quem somos - mas quando isso acontece - e acontece algumas vezes - algo se perde pelo caminho. E não é pouco!

A verdade é que servir não me é natural. Normalmente não acordo e me pergunto, alegremente, "ora, quem é que vou servir hoje?". Enquanto preparo mentalmente o meu dia penso na quantidade das tarefas que tenho para cumprir, nas pessoas que estão sob minha responsabilidade, na maneira de organizar o meu dia por forma a levar a bom termo tudo aquilo que me é pedido. Pelo menos comigo, o instinto primeiro é o do funcionalismo, o da operacionalização. 

Mas rezo. Todas as manhãs, rezo. Todos os dias, rezo. A cada momento, rezo. E rezar sintoniza-me, coloca-me numa outra dimensão, liga-me interiormente, não tanto às tarefas que tenho que cumprir, mas sobretudo àqueles com quem e para quem as devo cumprir. Quando rezo, tomo consciência que sou chamado a servir, humanizando as tarefas que me competem desempenhar, claro, mas colocando as pessoas no centro da minha preocupação, debruçando nelas o meu olhar e orientando para elas a minha acção. Até porque, no final do dia, quando o revisito e lhe aplico o crivo apertado do meu julgamento de mim próprio, é justamente isso que encontro de relevante: quem consegui - ou não - fazer "mais", hoje?

A verdade é que eu seria muito diferente se não rezasse!

 

 

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...