20211231

Mesmo com o meu habitual otimismo, não há maneira de conseguir sentir que este foi um bom ano. Vi demasiadas vezes o desespero e a dor nos olhares daqueles para quem trabalho para que possa ter a veleidade de fazer as pinturas que faço sempre para dar novas cores à minha realidade. É que, desta vez, nem se trata da minha realidade mas da realidade que acontece fora do meu exacerbado umbigo. Talvez por isso, ao longo deste ano as coisas boas nunca foram inteiramente boas, foram sempre acompanhadas de um espectro que pairava, permanentemente, e que quase me fazia sentir envergonhado quando me alegrava com o que me faz alegrar, como se não tivesse sequer o direito de o fazer. Ao longo deste ano dificilmente me sentia bem sem sentir uma pontada de dúvida: será que não estou a ser egoísta? Creio que esta será a marca deste ano, um pouco como calculo que será a marca deixada pelos estados de guerra, quando as pessoas têm mesmo, por questões de sobrevivência, de fazer um esforço para se alhearem do que se passa "lá fora", sendo que, nesta nossa guerra, o "lá fora" é a casa do vizinho, quando não é a casa de um familiar menos próximo. 

Este é, por isso, um ano para não esquecer. 

Curiosamente, hoje, estou com muito pouca vontade de recomeçar, o que é bastante inusitado da minha parte. Nem de recomeçar, nem sequer de começar. Não me apetece nada fazer o habitual reset para sentir renovadas energias e iludir vontades. Hoje, curiosamente, apetece-me permanecer. Sem cortes, sem ruturas, sem novas decisões de ano novo, mas, pelo contrário, assumindo e agarrando-me ao que é meu, verdadeiramente meu, sendo inteiramente eu. Agarrar-me aos meus, aos que amo, à minha fé, aos meus valores, à minha bússola, aos que comigo fazem o meu caminho, àqueles por quem batalho e com quem batalho, aos que ensino e com quem aprendo, congregando energias e balanço, como naquele movimento de finca pé que impulsiona antes do salto. Hoje apetece-me olhar para dentro, para os imensos que me habitam, e agradecer-lhes. E agradecer. Agradecer muito. Foi um ano duro. Muito duro. Mas estamos aqui. Preparados para o que der e vier. 

Venha ele.

20211228

 Sim, eu sei.

 

Estamos todos à distância de um click ou de uma mensagem 

mas não é a mesma coisa.

Encontramo-nos e rezamos juntos, numa estranha eucaristia, no aconchego do lar de cada um,

mas não é a mesma coisa. 

Despedimo-nos, à distância, uns dos outros, desejando-nos o melhor, com os sorrisos possíveis

mas não é a mesma coisa.

Cearemos todos, hoje,  mais ou menos ao mesmo tempo, nas nossas mesas,

mas não é a mesma coisa.

 

Faltou, este ano, mais uma vez, o estarmos efetivamente juntos na eucaristia, 

o sabor do bacalhau com broa da nossa ceia

os risos e as gargalhadas de quem se vê todos os dias em “farda de trabalho”

as brincadeiras do SPEC

as canções dos novos

o abraço apertado, caloroso, antes de rumarmos às nossas casas.

 

Seria tão bom que tivesse acontecido!

 

Seria... não foi. 

Pela segunda vez... não foi. 

Quando todos contávamos já que fosse... não foi.

Quando todos desejávamos já que fosse... não foi.

 

E ser Rosário, é também isto. 

 

É também a saudade que nos habita por não podermos ser o que, tão naturalmente, somos. 

É também sentirmos não ser a mesma coisa estarmos juntos e não podermos estar juntos; 

é também estarmos fartos de nos vermos por detrás de écrans; 

é também estarmos cansados de não nos vermos por detrás da máscara. 

 

E é também acreditar que a nossa fragilidade dará lugar a retomada energia

E é também confiar em quem nos lidera, 

em quem trabalha ao nosso lado, 

em quem se cruza connosco nos corredores.

 

E é também saber, 

sentindo, 

sorrindo, de olhos fechados, 

que Ele, o Menino Deus, 

está no meio do Nós.  

 

Feliz Natal, Gente Boa

 

É um privilégio fazer Natal convosco.

20211222


 

Não sou de humildades bacocas. Tento perceber quais as minhas capacidades, o que faço bem e o que faço menos bem, ou não consigo, de todo, fazer com um mínimo de qualidade e, quando me pedem alguma coisa, é justamente com base nesse conhecimento de mim próprio que aceito ou recuso as propostas e pedidos. Soa racional, mas não é apenas racional. Em mim, aliás, nada é puramente racional. Junte-se a isto uma enorme - saudável? - dose de loucura proveniente de um infantil entusiasmo pela possibilidade de ser e fazer com outros, e percebe-se porque tenho muitas vezes a sensação que estou perdido porque me meti numa alhada e dei um passo maior que as pernas. No entanto, é justamente esta saudável e inconsciente loucura que me leva a descobrir em mim capacidades que me desconhecia e a fazer coisas que me julgava impensáveis. E a dar com a cabeça na parede quando não o consigo.

Mas não me ouvirão dizer sim quando o que pretendo dizer é não, ou a dizer não à espera que me peçam com mais força. Quando julgo que posso - e quero - voluntario-me com alguma facilidade e desfaçatez, e cansam-me imenso aquelas pessoas que gostem que lhes abanem ao fogareiro. Da mesma maneira, não é por me pedirem muito que eu mudo de ideias.

Evidentemente, na prática, nem sempre tenho a possibilidade desta clareza. Todos nós, que fazemos parte de instituições, em algumas alturas nos vimos condicionados - pelo respeito, pelo carinho, pela amizade, pela autoridade (muito raramente, na minha vida) - a fazer aquilo que sabemos que não é a nossa praia. E umas vezes isso acontece porque naquela circunstância somos quem está mais à mão, ou todos os outros se encostaram ou então porque vêem em nós justamente aquilo que nós próprios não conseguimos ver. No meu caso, a um pedido desses segue-se sempre um enorme período de sofrimento, e um outro de estudo profundo, num ambiente interior de enorme insegurança. E, invariavelmente, não gosto de mim nesse desconforto generalizado. Até pode correr bem, até posso crescer, até posso desempenhar um bom trabalho, mas, no final, não me sinto compensado. 

É que eu, normalmente, gosto mais, muito mais, da viagem, e tendo a menosprezar o destino. E é-me sempre muito mais gratificante apreciar as pequeninas coisas do quotidiano que a eventual (e, para mim, sempre fugaz e efémera) glória da vitória. Que nunca compensa que tenha perdido a alegria do percurso.

20211216

 

Sou crescidinho o suficiente para já saber como por vezes a vida me impõe o que, se eu controlasse tudo, jamais faria. Na verdade, à medida que vou avançando no tempo, vão sendo cada vez menos as imposições ligadas àquilo que eu entendo que sou e mais ligadas àquilo que eu faço. São escolhas, claro, mas que de uma forma geral não me alteram nem a personalidade que é a minha nem os valores que me orientam. Mas, mesmo isso, nem sempre é assim tão líquido.

Eu cresci num meio social em que é maior motivo de vergonha pedir que roubar. Vou repetir: quando era muito miúdo, roubar era quase natural e pedir era sempre humilhante. Mesmo na eventualidade de se ser apanhado a roubar – o que não era muito frequente, pelo menos na altura – a justificação que era encontrada era, naquela envolvente, mais bem aceite pelos pares que a humilhação de ter que pedir. Afinal, só se roubava porque não se tinha o que a outros sobrava, pelo que seríamos uma espécie de Zé do Telhado em proveito próprio. E quem tinha, se não cuidava do que tinha, era porque não lhe fazia falta ou não lhe era suficientemente importante para justificar o seu bom cuidado. O meu percurso de vida fez-me reencontrar esta lógica da batata recentemente, junto de alguns dos miúdos com quem passo grande parte dos meus dias. E desmontar isto, mesmo para mim, que o entendo, não é fácil. Sobretudo se aliado a uma outra realidade, que até é incutida pelos pais: “Tu não pedes ajuda, tu desenrascas-te. E se eu venho a saber, seja por quem for, ainda ficas de castigo” (leia-se isto devidamente acompanhado de impropérios típicos do Norte: para cada palavra, dois impropérios). Para o bem e para o mal, esta arte do desenrascanço, a sós, no silêncio da culpa, marca-nos indelevelmente o corpo e a alma. A mim marcou.

Naturalmente, fui crescendo e a sorte da escolha mútua de boas companhias foram-me limando estas e outras arestas que me permitiram ir adotando um outro código de valores mais consentâneos, não com o que sou – ou julgava que era – mas com o que sou chamado a ser. Mas sabemos todos como há coisas em nós que permanecem, que, racionalmente, escolhemos que não sejam de uma determinada maneira, mas que nos desassossegam e exigem um esforço hercúleo para serem contrariadas.  Ora, pedir, para mim, é uma dessas coisas. Pedir o que quer que seja a quem quer que seja qualquer que seja o motivo é uma daquelas coisas que me revolvem as entranhas ao ponto de sentir náuseas. Por isso, sempre que pude, evitei esse ato de pedir.

Nas campanhas de solidariedade – que são frequentes na minha vida - nos hipermercados, escolho sempre estar noutro lugar que não seja o da entrega dos sacos. Posso estar na organização, posso estar durante vários dias, com vários turnos, na recolha dos bens e dos sorrisos, mas entregar sacos é matar-me. Posso trabalhar duro no armazém, ser o primeiro a chegar e o último a sair, organizar criteriosamente os alimentos por género e número, contar e recontar para que não falhe nada, mas não me peçam para os pedir. Nem pedir às pessoas para estrem presentes, ou colaborarem, ou abdicarem do seu tempo para me ajudarem. Nada disso. Eu resolvo, eu sacrifico-me, eu desenrasco-me. Com um sorriso nos lábios.

O que eu não sabia – e que a vida se encarregou de me ensinar da melhor maneira: espetando a parede contra a minha cabeça – era que esta é uma extraordinária falta de humildade da minha parte. Pedir é recusar-me autossuficiente, é colocar-me à mercê de alguém, é dizer eu não tenho, é olhar nos olhos e dizer eu preciso, é tornar-me dependente, é arriscar ser desprezado e humilhado, é encarar a possibilidade de ser motivo de pena, que é, para mim, a suprema humilhação. Vai contra todos aqueles instintos que me foram incutidos em miúdo e que ainda hoje me fazem engolir em seco quando têm que ser contrariados. Mas têm que ser contrariados. Eu tenho que os contrariar. Porque pedir, se é aquilo tudo que referi anteriormente, é também descoberta que se é amado, é também ser puxado para cima, é também encontrar uma mão que nos é estendida, é também mergulho num Nós que apenas ultrapassa o vácuo palavrar e encontra verdade quando tem a oportunidade de se fazer vida vivida, vida sentida, vida partilhada. Efetivamente. Na carne. Na alma.

Já adulto, pedi e peço muitas vezes. Nenhuma delas sem um enorme custo, nenhuma delas sem aquela náusea, nenhuma delas sem a procrastinação que destino às coisas verdadeiramente desagradáveis que espero que não tenha necessidade de fazer acontecer, nem que seja por uma qualquer luz vinda do céu: “afasta de mim este cálice, Pai”. Quando peço, o que quer que seja, a quem quer que seja, para quem quer que seja, faço-o inevitavelmente tarde e a más horas, quando já não consigo adiar mais, quando já enfrento as nefastas consequências de não ter tido a coragem de efetuar o pedido antes, atempadamente, quando se justificava, quando sabia ser inevitável enfrentar a dolorosa necessidade de pedir.

E, no entanto, sempre que peço fico maravilhado. Pela generosidade de quem me acompanha, pela naturalidade da entrega, pelo amor que me rodeia e que se torna particularmente palpável quando eu preciso do que quer que seja, de quem quer que seja, para quem quer que seja. Vou percebendo que pedir é uma espantosa maneira de revirar o quotidiano permitindo que o ar se renove, libertando o que nos ata, dando visibilidade e possibilidade ao melhor de nós. E que, por isso, pedir, colocar-se à mercê, submeter-se, estender a mão, é, afinal, o que nos torna verdadeiramente humanos. E caminho, para que os outros façam acontecer amor em nós.

 

Publicado aqui: https://hospedeignorado.blog/

 

Bambora

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