Sou crescidinho o suficiente para já saber como por vezes a
vida me impõe o que, se eu controlasse tudo, jamais faria. Na verdade, à medida
que vou avançando no tempo, vão sendo cada vez menos as imposições ligadas
àquilo que eu entendo que sou e mais ligadas àquilo que eu faço. São escolhas,
claro, mas que de uma forma geral não me alteram nem a personalidade que é a
minha nem os valores que me orientam. Mas, mesmo isso, nem sempre é assim tão
líquido.
Eu cresci num meio social em que é maior motivo de vergonha
pedir que roubar. Vou repetir: quando era muito miúdo, roubar era quase natural
e pedir era sempre humilhante. Mesmo na eventualidade de se ser apanhado a
roubar – o que não era muito frequente, pelo menos na altura – a justificação
que era encontrada era, naquela envolvente, mais bem aceite pelos pares que a
humilhação de ter que pedir. Afinal, só se roubava porque não se tinha o que a
outros sobrava, pelo que seríamos uma espécie de Zé do Telhado em proveito
próprio. E quem tinha, se não cuidava do que tinha, era porque não lhe fazia
falta ou não lhe era suficientemente importante para justificar o seu bom
cuidado. O meu percurso de vida fez-me reencontrar esta lógica da batata
recentemente, junto de alguns dos miúdos com quem passo grande parte dos meus
dias. E desmontar isto, mesmo para mim, que o entendo, não é fácil. Sobretudo
se aliado a uma outra realidade, que até é incutida pelos pais: “Tu não pedes
ajuda, tu desenrascas-te. E se eu venho a saber, seja por quem for, ainda ficas
de castigo” (leia-se isto devidamente acompanhado de impropérios típicos do
Norte: para cada palavra, dois impropérios). Para o bem e para o mal, esta arte
do desenrascanço, a sós, no silêncio da culpa, marca-nos indelevelmente o corpo
e a alma. A mim marcou.
Naturalmente, fui crescendo e a sorte da escolha mútua de
boas companhias foram-me limando estas e outras arestas que me permitiram ir
adotando um outro código de valores mais consentâneos, não com o que sou – ou
julgava que era – mas com o que sou chamado a ser. Mas sabemos todos como há
coisas em nós que permanecem, que, racionalmente, escolhemos que não sejam de
uma determinada maneira, mas que nos desassossegam e exigem um esforço hercúleo
para serem contrariadas. Ora, pedir,
para mim, é uma dessas coisas. Pedir o que quer que seja a quem quer que seja
qualquer que seja o motivo é uma daquelas coisas que me revolvem as entranhas
ao ponto de sentir náuseas. Por isso, sempre que pude, evitei esse ato de
pedir.
Nas campanhas de solidariedade – que são frequentes na minha
vida - nos hipermercados, escolho sempre estar noutro lugar que não seja o da
entrega dos sacos. Posso estar na organização, posso estar durante vários dias,
com vários turnos, na recolha dos bens e dos sorrisos, mas entregar sacos é
matar-me. Posso trabalhar duro no armazém, ser o primeiro a chegar e o último a
sair, organizar criteriosamente os alimentos por género e número, contar e
recontar para que não falhe nada, mas não me peçam para os pedir. Nem pedir às
pessoas para estrem presentes, ou colaborarem, ou abdicarem do seu tempo para
me ajudarem. Nada disso. Eu resolvo, eu sacrifico-me, eu desenrasco-me. Com um
sorriso nos lábios.
O que eu não sabia – e que a vida se encarregou de me
ensinar da melhor maneira: espetando a parede contra a minha cabeça – era que
esta é uma extraordinária falta de humildade da minha parte. Pedir é recusar-me
autossuficiente, é colocar-me à mercê de alguém, é dizer eu não tenho, é olhar
nos olhos e dizer eu preciso, é tornar-me dependente, é arriscar ser desprezado
e humilhado, é encarar a possibilidade de ser motivo de pena, que é, para mim,
a suprema humilhação. Vai contra todos aqueles instintos que me foram incutidos
em miúdo e que ainda hoje me fazem engolir em seco quando têm que ser
contrariados. Mas têm que ser contrariados. Eu tenho que os contrariar. Porque
pedir, se é aquilo tudo que referi anteriormente, é também descoberta que se é
amado, é também ser puxado para cima, é também encontrar uma mão que nos é
estendida, é também mergulho num Nós que apenas ultrapassa o vácuo palavrar e encontra
verdade quando tem a oportunidade de se fazer vida vivida, vida sentida, vida
partilhada. Efetivamente. Na carne. Na alma.
Já adulto, pedi e peço muitas vezes. Nenhuma delas sem um
enorme custo, nenhuma delas sem aquela náusea, nenhuma delas sem a
procrastinação que destino às coisas verdadeiramente desagradáveis que espero
que não tenha necessidade de fazer acontecer, nem que seja por uma qualquer luz
vinda do céu: “afasta de mim este cálice, Pai”. Quando peço, o que quer que
seja, a quem quer que seja, para quem quer que seja, faço-o inevitavelmente
tarde e a más horas, quando já não consigo adiar mais, quando já enfrento as
nefastas consequências de não ter tido a coragem de efetuar o pedido antes,
atempadamente, quando se justificava, quando sabia ser inevitável enfrentar a
dolorosa necessidade de pedir.
E, no entanto, sempre que peço fico maravilhado. Pela
generosidade de quem me acompanha, pela naturalidade da entrega, pelo amor que
me rodeia e que se torna particularmente palpável quando eu preciso do que quer
que seja, de quem quer que seja, para quem quer que seja. Vou percebendo que
pedir é uma espantosa maneira de revirar o quotidiano permitindo que o ar se
renove, libertando o que nos ata, dando visibilidade e possibilidade ao melhor
de nós. E que, por isso, pedir, colocar-se à mercê, submeter-se, estender a
mão, é, afinal, o que nos torna verdadeiramente humanos. E caminho, para que os
outros façam acontecer amor em nós.
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