20210524

 

"Olá, sou o Zé".  Não me custa imaginar que do outro lado alguns dos que me lêem respondam, ainda que em silêncio: "olá Zé". É assim que me apresento, invariavelmente, há uma data de anos, justamente porque é assim que me sinto desde sempre. Zé. Só Zé. Simplesmente Zé. Despretensiosamente Zé. Agora é-me fácil, o mais natural possível, para mim, ser este Zé. Mas nem sempre foi assim. Aliás, só muito recentemente tem sido assim. Tornou-o possível a famosa crise masculina dos cinquenta, numa altura em que, face a acontecimentos que me foram profundamente significativos - alguns internos, outros externos - eu entrei em pânico por me perguntar o que diria ao meu Deus quando, como eu acredito que acontecerá. nos encontrarmos olhos nos olhos. Na altura, o Mero e o Lino, num breve espaço de tempo, tiveram esse encontro - e o Jorge faltou ao encontro, felizmente! - e eu perguntava: e se fosse eu? O que diria? Como o diria? Quem seria? e entrei em parafuso. Se normalmente coloco tudo em questão, nessa altura não ficou pedra sobre pedra: tudo derrubei, tudo procurei, fui ao fundo das gavetas que jaziam no fundo dos baús que eu cuidadosamente varrera para debaixo do tapete durante toda a minha vida. E vi-me e escutei-me e questionei-me e perdi-me e reencontrei-me, invariavelmente agarrando as mãos que me eram estendidas e que me certificavam que eu, apesar de mim, era amado. Desde então mudaram algumas coisas mas creio que o essencial permanece, e permanecerá, espero eu. Continuo o mesmo puto maravilhado com a sensação de viver no bazar de brinquedos, continuo à procura de algo mais, continuo a agradecer o imenso que tenho e, agora, a agradecer o que vou conseguindo ser. Louvo a Deus todas as manhãs e agradeço-Lhe todas as noites. Por quem me rodeia, sobretudo. Continuo a sonhar muito, a projetar muito, a querer pouco, a conseguir pouco, e, agora, a ser feliz com isso. Porque sou eu. As camelices são as minhas camelices, as insuficiências são as minhas insuficiências. os defeitos são os meus defeitos. E as escolhas são as minhas escolhas. Conscientes, ponderadas, comprometidas, umas, inconscientes, levianas e descomprometidas outras. São as minhas escolhas, não as renego, mesmo quando incompreendidas. Sobretudo quando incompreendidas. Porque descobri que, quem me ama, ama-me mesmo sem conseguir compreender tudo em mim. E ama-me mesmo não gostando de tudo o que compreende.

"Olá, sou o Zé". Já não me assusta dizer-Lhe. A minha batalha, agora, de todos os dias, é poder vivê-lo como espero, um dia - que venha longe! - dizê-lo: de peito aberto e cabeça erguida e, sobretudo, confiança no Amor.

20210517

 

Detesto a sobranceria. nos outros. Odeio a sobranceria. Em mim. Às vezes tenho a mania e apanho-me a ter a mania e fico sempre muito desiludido e zangado comigo quando isso acontece. Hoje foi a propósito de uma foto do Goucha e do Carreira. A legenda referia qualquer coisa como dor e lágrimas e o meu primeiro impulso interior foi sarcástico. Dois segundos depois arrependi-me, mas a verdade é que esse primeiro impulso interior esteve lá. Como está sempre. Não falha! Nunca! Infelizmente!

Conheço muitas pessoas genuinamente boas. Que se preocupam genuinamente. Que se comovem genuinamente. Pessoas cuja batalha interior vai no sentido da necessidade absoluta de refrear a compaixão fazendo um apelo ao racional que há em si para que possam manter a camisola em cima do corpo. Conheço-as, vivo com elas, trabalho com elas, tento segui-las. Porque não são essas as minhas batalhas. As minhas travam-se, invariavelmente, e para desgraça minha, em sentido oposto. O meu primeiro impulso é sempre, sempre, umbilical. Sempre, sempre, na tentativa de não ver, nem que para isso recorra ao sarcasmo e à desvalorização completa do que me rodeia. É certo que, em boa verdade, a minha primeira ação contraria sempre esse primeiro impulso e co-movo-me facilmente em direção ao outro. Mas é sempre trabalhado, racional, consciente, contrariando todos os meus instintos. Por isso os outros são tão importantes na minha vida. Por isso a fé fé tem uma importância absolutamente fundamental e indispensável na minha vida. Sem eles, sem ela, eu seria, conscientemente, má pessoa. E viveria, miseravelmente, na ilusão da felicidade.

20210514

 
 
Nunca tinha estado sob a luz dos holofotes. Foi a minha primeira vez. Na verdade, já me vou habituando a ter os olhos postos em mim nas eucaristias e orações - é fundamental para que cantemos juntos - mas aí não sou propriamente eu mas o papel que ocasional e momentaneamente assumo: ponho as pessoas a cantar. E como gosto de o fazer! Aqui era diferente: era eu mesmo que estaria sob a luz, era de mim que falaria. O meu lado profusamente inconsciente permitiu que fosse completamente descontraído. Sabia que era muito mais importante para quem me convidou e, sobretudo, que não teria que preparar ou estudar coisa nenhuma. Ser-me-iam colocadas perguntas e eu responder-lhes-ia como muito bem entendesse. O fundamental disto tudo era - é - o meu carinho e respeito, ambos intensos, profundos e alicerçados na vida, por quem me tinha convidado. 
Passou rápido, à velocidade com que passa aquilo que me sabe bem viver. Tinha tido a oportunidade de testemunhar uma das coisas que mais aprecio: um conjunto de gente nova, desempoeirada, a preparar o seu e o nosso futuro. Juntos, tínhamos sacudido o nervosismo inicial e, espero, aproveitado a viagem. Assisti às suas escolhas técnicas - câmara para aqui, nova perspetiva para ali, som na lapela - a barba a raspar na camisa - com o deleite de quem não tem nada a ver com isso a não ser percepcionar a imensidão que vai na cabeça de quem se prepara para ser o melhor na sua área.  
Como em quase tudo o que faço - mesmo a nível profissional - não tenho uma preocupação excessiva pelo resultado final. A mim compete-me fazer bem, o melhor que me é possível, dentro de todas as minhas condicionantes, tentando não defraudar expectativas. Depois, o que os outros fazem com o que fiz é da sua responsabilidade. Desta forma, aproveito a viagem de forma a sair dela um bocadinho melhor que quando entrei. E foi justamente isso que ontem aconteceu: sentei, relaxei, conversei. Uma conversa de amigos com os olhos postos no Leo, um amigo que tenho tido o enorme privilégio de ver crescer. Sabemo-nos na mutualidade da amizade profunda, do enorme apreço, da descoberta, e até da dor. 
E quando, chegado a esta idade, me sinto acarinhado por pessoas deste calibre, só me posso sentir abençoado.

 

20210513

 

Ultimamente, tenho andado à volta das memórias. Não tanto as que temos, as que os outros nos deixam, aquelas que nos marcam e das quais nos recordamos não sem emoção, uma emoção que é diretamente proporcional à idade e ao tempo que passa. Eu diria que essas memórias nem são da nossa responsabilidade: basta termos as melhores das companhias, aquelas que permitem que baixemos as defesas e elas entram, livremente, sem convite, ocupando o seu espaço, algumas, as mais significativas, até armando tenda para se deixarem ficar indefinidamente. Volta e meia, a propósito de um qualquer acontecimento, de um qualquer cheiro, de uma música que mal ouvimos na rádio, e aí estão elas, criteriosamente selecionadas, espantosamente criteriosas quando à recordação do imenso que vivemos. E têm o desplante de assomar à nossa face sob a forma de inexplicável sorriso sem se preocuparem sequer se será essa a altura mais conveniente para o fazer. E os outros vêem-nos sorrir feitos estúpidos, ou a tristeza a tomar conta de nós, perguntando-se a si próprios o que fizeram para ficarmos assim. 

Ultimamente, tenho andado à volta das memórias. As que deixamos, as que depositamos nos outros, conquistada a confiança para entrar pela sua alma adentro sem pedir licença ou sacudir o pó na soleira da porta. Estas são as memórias que estão sob nossa responsabilidade, são como rebuçados cujo sabor nos está vedado e apenas podemos dar a conhecer aos outros, tomando-lhes o gosto por interposta e transbordada partilha. São as nossas marcas, as que deixamos, aquelas com as quais contaminamos as vidas com que nos cruzamos. São o eu nos outros.  O problema é que por vezes o fazemos com tal sobranceria e descuido que o que damos a provar é amargo, azedo, que em nada corresponde ao legado do que somos e muito menos do que queremos ser. Um descuido tão mais frequente quanto maior a intimidade, que frequentemente confundimos com perenidade, quando deveria ser precisamente o oposto.

Debruço-me frequentemente sobre esse meu legado. Na realidade, será a única coisa minha que permanecerá para além de mim.


20210510

A inevitabilidade do encontro

 


Poucas coisas me impressionam mais que a solidão. Não aquela procurada, sabiamente interlocutora na e da intimidade, ponto de encontro e de observação, da retoma do fôlego que permitirá o reavivar da caminhada. Esta é, paradoxalmente, uma solidão habitada, plena, prenha de sonhos de futuro. Impressiona-me a outra solidão, a dura, crua, aquela que, empenhada em revelar o tão laboriosa e cuidadosamente escondido, é feita de confronto, de dor, de impossibilidade de fuga ou ocultação. Fatalmente, esta é a solidão que a ausência de palco revela, a que sai da penumbra e aparece à medida que a maquilhagem vai sendo retirada e, com ela, o sorriso e a alegria que, postiçamente, foram usados ao longo do dia. Perante esta, que sorri maldosamente do outro lado do espelho, a nudez desvelada é absolutamente devastadora. E, com sorte e sabedoria, profundamente transformadora.

Creio que todos temos encontro marcado com a solidão. Na verdade, espero que todos tenhamos encontro marcado com a solidão. Porque apesar da dor, uma vida vivida sem esse desvendar de si que apenas pode ser feito a sós significa, provavelmente, uma vida desperdiçada. Há uma inevitabilidade no encontro profundo com a verdade, a nossa verdade, aquela que apenas a cada um diz respeito, e impõe respeito, sob pena de vivermos como perfeitos desconhecidos de nós mesmos. Um encontro que não pode nem deve ser adiado indefinidamente, na vã esperança que custe menos, que doa menos, que o tempo atenue as feridas que escondemos e das quais nos escondemos. Contudo, apesar de não ser esse o efeito provocado pelo tempo, acredito mesmo que o tempo poderá jogar a nosso favor. Porque o tempo também cura as feridas, por mais profundas que sejam. Mas isso apenas acontecerá se, chegado o momento certo – e são tantos e tão variados os momentos certos – não temermos ter a solidão por companheira. E se, apesar da verdade do nosso olhar sobre nós, nos permitirmos renascer.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...