20200531

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Acabei de ler, referindo-se a alguém, que era um bom cristão. Eu não sei o que é ser um bom cristão. Ou melhor, eu sei o que é querer ser bom cristão, agora, ser bom cristão... Pegando no exemplo de alguém que me interroga muitas vezes, judas, eu tenho uma série de questões que ainda não se silenciaram porque ainda não se viram resolvidas. Eu acho que judas era efetivamente um homem de bem. Seguia Jesus, admirava Jesus, e provavelmente quando O entregou julgou estar a fazer o melhor. Ao ponto de se ter suicidado por não conseguir lidar com a vergonha que os seus atos originaram. Era uma pessoa má porque tomou uma decisão má? Não sei! Não sei mesmo. Assim como não sei o que levou os dois ladrões a serem crucificados com Jesus. Sei que para Ele isso não foi importante, apenas a vontade de um deles em acreditar e, esgotado o tempo de o poder fazer cá por baixo, de O seguir no que se seguiria. Para Jesus apenas isso contou.
Na verdade, isto complica bastante o esquema. É-nos instintivamente mais natural e confortável a etiquetagem. Saber de antemão se alguém é bom ou mau permite-nos uma maior (ilusória) segurança, um mais apropriado posicionamento de barreiras para não sermos "tomados por lorpas", como a minha sogra diz. Mas isso é muito limitativo, conduz a erros, leva a não conseguir apreciar as coisas como elas são mas a fazê-lo de acordo com as nossas pre-conceitos. É um sistema mais preguiçoso, e mais perigoso, porque nos afasta mais rapidamente daquilo que é a verdade. E a justiça.

20200521

202005210847

Lentamente, os dias vão voltando a ser dias. Na normalidade possível, na nova normalidade, como agora se diz, o ritmo vai regressando às manhãs, tomando conta do acordar. Hoje a VCI tinha já o movimento parecido ao do tempo de férias escolares: em fila mas sem paragens. Há mais gente nas ruas, mais gente nos transportes e, não fora o uso generalizado de máscaras, dir-se-ia que estávamos num qualquer dia de julho ou agosto. Não estamos. É maio, mesmo. Mas creio que, ao fim de quase três meses de vida esquisita, ansiamos todos pela normalidade. 

Ainda ontem, quando, pela primeira vez nos últimos três meses, passeávamos no Parque da Cidade, víamos alguns dos nossos alunos a fazer parte da imensa multidão que mandava o confinamento às malvas e se agrupava para conviver. E a Isabel dizia que haverá muita gente que preferirá viver neste regime, onde há mais tempo e menor tensão. Há uma notória dicotomia em todos nós. Por um lado, parecemos drogados viciados, adictos em trabalho, em rotinas, em pressas, em agendas sobrecarregadas. Por outro lado, aproveitamos o confinamento obrigatório para nos ressituarmos enquanto pessoas, enquanto famílias, enquanto relações. Não me parece que o virtual possa alguma vez substituir o presencial. Por muito cómodo que seja viver sem pressa e sem trânsito, não me parece que possa ser por aí. O virtual não tem sentimento, não permite o contágio das emoções, senão de uma maneira muito artificial e fugaz. E nós podemos conviver algum tempo sem a profundidade do sentir, mas, a determinada altura, isso torna-se inevitavelmente tão imprescindível como respirar.

20200519

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Recordo-me que já vi este filme. Há uns anos, numa das conversas com o meu sogro, ele punha-me perante a sua perspetiva do tempo: "já viste que se eu viver até aos 85 viverei apenas mais 15 anos?" Até porque ele veio a falecer repentinamente pouco tempo depois, nunca me esqueci dessa conversa. Desta vez foi a minha sogra: "já viste como há tanta gente que esteve no vosso casamento que já não está cá?". Começamos a contar, por alto, e 3 mãos não chegavam. Entre eles, alguns amigos, mais novos que eu ou da minha idade.

A finitude e a morte têm vindo a fazer parte da minha vida. Durante anos fugi dela mas, inevitavelmente, as chapadas na boca forçaram-me a enfrentá-la. Nalguns casos com imensa surpresa, dor e consternação, noutros mais naturalmente, assumindo e aceitando a morte como algo fundamental da vida.

Recentemente, um amigo disse-me que estava a ser tratado no IPO. Cancro. Chapada na boca, novamente. Fico sempre abananado quando isto acontece. A vida adquire um novo olhar, uma nova perspetiva, e a morte volta a entrar, de forma consciente, no horizonte da vida.

Na última vez que isto aconteceu, com um amigo, e um cunhado, ambos sensivelmente da minha idade, fui-me abaixo das canetas. Foi um tempo de reprocessamento, de reavaliação, de olhar para ontem e para os hoje da minha vida. Foi um processo longo, moroso, extremamente penoso, sobretudo para a minha mais-que-tudo e para os meus filhos que, por mais que me estendessem a mão, a viam por mim recusada. Foi também, inevitavelmente, um tempo transformador, durante o qual, finalmente, me olhei com olhos de amor e me consegui sentir digno de ser acolhido pelo meu Deus. E como isso me era importante! Naquela altura, a pergunta que me foi despoletada pelos acontecimentos era "e se fosse eu, como me apresentaria diante de Deus?". Andei meses obsessivamente à volta disso, sentindo-me profundamente indigno e envergonhado, até que me permiti amar pela Isabel e os meus filhos, e depois, durante um bendito retiro que estava marcado há muito - não há coincidências, há teocdências - me permiti ser amado pelo próprio Deus.

Não estranhei, por isso, que notícia e as minhas lágrimas trouxessem consigo o medo da Isabel. A memória tem esta coisa de tornar presente os nossos sentimentos mais entranhados, nunca definitivamente resolvidos. Sosseguei-a, claro. Desta vez, a dor era mesmo pelo nosso amigo, não minha. E a minha resposta à omnipresente questão "e se fosse eu?" seria, hoje, "vivê-lo-iamos  juntos".

20200515

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Começamos o dia como gostamos: pequeno almoço seguido de uma boa caminhada, desta vez por terras de são pedro da cova. Enquanto caminhamos fazemos o que nos é fundamental: falamos de tudo o que nos vem à cabeça, sem filtros, sem escolha de assuntos ou de palavras. Falamos de coisas importantes e de coisas nenhumas, que é a massa de que é feita a nossa vida. Desta forma, naturalmente, sem disso estarmos plena e permanentemente conscientes, juntamos a massa, misturamos a massa até que ela seja uma só para que possa ir levedando durante o dia.

Ao longo deste confinamento estive uma semana sem caminhar. O joelho inchou e fui despachado a gelo, anti-inflamatório e repouso. Foi a única semana em que discutimos, não faço ideia a que propósito, mas sei bem porquê: estávamos ambos em casa mas, porque não caminhávamos, porque não íamos de carro para o colégio, não estávamos juntos. Ao longo dessa semana estivemos ambos com as orelhas mergulhadas nos nossos computadores, cheios de trabalho à distância, mergulhados nos nossos próprios afazeres, nos nossos próprios problemas. Acordávamos juntos, comíamos juntos, dormíamos juntos, e pouco mais. E ressentimo-nos disso. Até que discutimos, vociferando das coisas nenhumas de que não tínhamos falado ao longo da semana. E ficou tudo bem. Em nós, a acumulação das coisas nenhumas não conversadas facilmente se transvestem de coisas importantes.

Fizemos esta semana 30 anos de casamento. Aos quais se adicionam 5 de namoro. São 35 anos de vida em comum, de afinações, de descobertas, de redescobertas, de baralhar e voltar a dar. Esses 30 anos não nos diluíram numa pessoa só: ambos temos, à nossa maneira, personalidades fortes, somos pessoas pensantes e convictas, ambos gostamos de batalhar pelas nossas convicções e nenhum de nós está disposto a abdicar da sua essência em nome de coisas nenhuma. Mas estes 30 anos permitiram que nos moldássemos mutuamente, que deitássemos fora o que era para deitar fora, que conservássemos e fizéssemos nosso, comummente nosso, o que era de manter. Somos hoje, ambos, muito melhores pessoas do que éramos quando nos conhecemos. Tornamo-nos, ao longo destes anos, muito melhores pessoas, do que seríamos um sem o outro. Permitimo-nos tornar melhores, deixando que a cumplicidade do amor nos moldasse, nos esculpisse, nos complementasse.

Este confinamento permitiu-me esse vislumbre. Do que poderá ser a nossa vida nos próximos 30 anos. Venham eles. Aguardo-os de peito aberto e alegria no coração.

20200513

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Tenho lido poesia. A que consigo. Como consigo, que é mal. Roubando o que à poesia não se pode roubar: o tempo. Na verdade, não sou ainda um leitor de poesia, mas um consumidor de poesia. Ainda pego num poema sem nele me deter o suficiente para que ele ecoe em mim. Como a música. Acumulo, não oiço. Guardo para um dia, sabendo que esse dia dificilmente chegará. Só se eu mudar muito. Só se eu for já outro. Só se eu der já tempo ao tempo e parte desse tempo à poesia. E à música. Será outro tempo. Será outro eu. Mas sendo o tempo outro tempo e sendo eu outro eu, eu continuarei sem saber ler poesia.

20200512

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Se me dissessem, há trinta anos, que ao fim de trinta anos estava como estou, eu não acreditaria. Trinta anos de casado vai muito para além daquilo que eu imaginaria possível em mim. Não porque não os quisesse, não porque não os sonhasse, mas porque os temia tanto que me pareciam impossíveis! Não me recordo de muitas coisas do dia do nosso casamento - o fotógrafo foi assaltado nessa noite e nem fotos temos! - e a sensação que tenho sempre que penso nisso é a de que vivia um sonho. Recordo sim que, no final do dia anterior, ao ir daquela que seria a nossa casa para a minha casa de solteiro, ia em pânico: casar era tão para além daquilo que eu merecia na minha vida que eu tinha a certeza que iria ser atropelado porque uma coisa boa dessas não me poderia acontecer. Talvez por causa disso andei nas nuvens no dia do casamento e tudo o que recordo seja muita cantoria, muita alegria, muita dança e festança como convém à dona constança. E a verdade é que não andava muito longe do que temia. A verdade é que eu jamais conseguiria manter uma casamento de trinta anos. A questão é que o casamento não era meu, nem era eu. Era nós. É nós. E isto muda tudo. Foram inúmeras as vezes em que nos estendemos a mão, em que nos permitimos, em que esquecemos, em que remetemos para as calendas, em que calamos, em que não calamos, em que corremos atrás, em que esperamos, em que estendemos a mão, em que nos estenderam a mão, a ambos, em que não fazíamos ideia do que fazer a seguir, em que arriscamos, em que ganhamos, e perdemos, em que choramos e rimos, em que conversamos até que a noite se fizesse dia, em que discutimos até que o dia se fizesse noite, em que dançamos, em que tivemos prazer, em que nos suportamos, em que dificilmente nos suportamos, em que nos desiludimos, em que nos orgulhamos, em que nos conformamos, em que nos moldamos e deixamos moldar, em que nos apaixonamos, em que dançamos, descalços, com os seus pés em cima dos meus pés e de olhos fechados ao som de uma música por si trauteada, só nossa - ainda esta manhã o fizemos! - em que passeamos, em que descobrimos mundos para além dos mundos que habitávamos, em que nos desafiamos, em que nos tememos, em que nos confiamos, em que... em que... em que... foram inúmeras as vezes porque são inúmeros os nossos dias partilhados, são inúmeras as nossas noites partilhadas, são inúmeros os acontecimentos e as lutas e as batalhas e as pequenas e grandes vitórias que se sucederam sempre, sempre, às pequenas e grandes perdas e derrotas. Nenhum de nós é a pessoa que casou em são pedro da cova às 15 de horas daquele sábado 12 de maio de 1990. Ainda bem! Nem sequer nos amamos como naquele dia. Ainda bem! Não são já ovos de páscoa, como a minha sogra dizia que eram os primeiros tempos de casados. É uma vida. A dois, a sete, a quinze, a cinquenta, a cem, a tanta e tanta gente que nos acompanhou e ensinou e aprendeu ao longo destes anos. É uma vida. Rica, partilhada, cheia, cúmplice e, sobretudo, recheada de amor, daquele amor que emana das entranhas e nos permite desejar recomeçar sempre. Juntos. E nos permite sonhar sempre. Juntos! E como é bom amar assim hoje, quando fazemos trinta anos de casados!

20200501

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Estava agora mesmo a atualizar os meus contactos. Dos alunos com quem trabalho, principalmente. Dos do 12º ano, em particular. À medida que ia passando por cada um deles ia revisitando os seus rostos e, sobretudo, os nossos momentos. Este 12º foi - ainda é, mas para mim, que não dou aulas, já foi - especial. A quantidade deles que estava envolvido nos Projetos, no ComTigo, nas orações formais e informais, nas conversas formais e informais, torna esta covid particularmente difícil. E injusta. Normalmente, por esta altura, estaríamos a pensar em mais um encontro, em mais um H'Ora Bem, a preparar a sua eucaristia de finalistas, tantas vezes falada ao longo do caminho para e de Taizé, e que agora vemos gorada. Tenho pena. Muita pena. Uma pena que, se medida, apenas perderia para a saudade.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...