20180926
Nós temos uma expressão: ir de fátima a nazaré. Estávamos nos primórdios da nossa vida, em fátima, num dia de calor sufocante, e eu tive que lhe pegar literalmente ao colo, enfiá-la quase à força no carro e levar-nos à nazaré, onde pudemos respirar um outro ar. Acontece-nos isso, por vezes. Estamos mal, tão mal que nem nos apercebemos que estamos mal, tão mal que nos incomoda sequer a perspetiva de nos mexermos, tão mal que precisamos que nos peguem ao colo, tão mal que a última coisa que nos ocorre é deixarmo-nos amar. Aconteceram-nos imensas vezes, pegamo-nos mutuamente, cuidamo-nos mutuamente, amamo-nos mutuamente. Nem sempre de mútuo acordo. Sempre com o mesmo resultado: sentirmo-nos amados e cuidados. E nada há na vida melhor que sentirmo-nos amados e cuidados.
Ontem, no final de um longo e algo penoso dia de trabalho, olhei-a e vi o seu olhar cansado. "Vamos namorar". Descemos alguns metros até ao mar, o nosso mar, um dos lugares que testemunham a nossa vida de muitas vidas, o nosso caminho de muitas caminhadas, as nossas lágrimas de ainda maiores sorrisos. E eu sabia que iria acontecer o que aconteceu: voltei a ver o seu olhar de gaiata, feliz, apaixonada, a louvar a Deus e à vida, por termos ido de novo de fátima a nazaré. Eu conhecia o desfecho, antecipara-o e, deliciado, confirmava-o agora no seu olhar, sentia-o no seu abraço forte, no beijo prolongado.
Há, no caminho feito, milhares de histórias feitas de contrastes, de estados de espírito diferentes, alternados, repentinos ou repetidos, intempestivos ou antecipados, programados, mas sempre, sempre, tidos como novos, sentidos como novos, vividos como novos, num renovar constante que faz determinadas coisas sempre novas. Como a sua alegria belíssima, genuína, infantil, à medida que caminha sofregamente sobre os seixos da praia para molhar os pés na água gelada. Haveremos de ter 90 anos e, para mim, nessa cena, ver-te-ei sempre menina a caminhar, feliz, em direção ao mar!
20180912
Quem me conhece mais de perto ouviu já uma expressão que uso algumas vezes: sou um barco com motor fora de bordo. Não fora isso e, quando muito, seria um daqueles barcos a remos, de madeira gasta e envelhecida, repintados inúmeras vezes para turista ver, mas a que nem a brutal força braçal os faz sair da cepa torta. Ou então, o que é ainda mais provável, um daqueles barcos cuja existência se confina às margens, se resume ao casco meio desfeito, quase irreconhecível, sem pintura que lhe valha, de tanto levar, sem apelo nem agravo, com o efeito das marés desta e de outras vidas.
Várias vezes na vida julguei ser veleiro ágil e esguio, e cometi a loucura de enfrentar ventos e marés, orgulhosa e vaidosamente ostentando as minhas velas enfunadas ao vento. A vertigem da velocidade provocada pelo vento a favor inebriou-me sempre e sempre teve o mesmo destino: esse mesmo vento a favor, que antes me provocara a ilusão do voo, é o mesmo que me rasga as velas, me impede de avançar e, afundando-me no mar, me torna âncora de mim mesmo. E fico lá, parado, em eterna maresia, impotentemente indiferente, indiferentemente impotente, alheio à vida que vai passando ao largo.
Nessas alturas, invariavelmente, chega o meu motor de fora de bordo. Desprezando ventos e marés, olha amorosamente para o que, ignorando as evidências, acredita que sou, e me leva de volta ao cais onde, no lado oculto dos holofotes, me restaura cuidadosamente, por vezes penosamente, mas sem nunca deixar de acreditar no que posso ser, no que sou chamado a ser, fazendo-me acreditar voltar a ser. Ainda que seja para, de novo, ostentar vaidosamente as minhas velas ao vento.
O melhor de mim chegou-me por seu intermédio. A consolidação da fé, a descoberta da família, a alegria do (des)empenho, a necessidade de ser fazendo, tudo me foi apresentado, tudo me foi introduzido, tudo me foi acalentado em doca seca, pedaço a pedaço, colando aqui e aparafusando acolá, fazendo e refazendo, pintando e repintando, por e com amor, imenso, incontável, inacreditável amor, no cais da nossa vida comum. Companheira de toda a minha vida que valeu a pena ser vivida, é ela o meu motor, o meu grilo falante, a minha consciência. É ela quem me cuida, quem me transforma, quem me leva a acreditar que posso ser ser quem jamais sonhei ser.
Vê-la, ontem, num belíssimo final de tarde, num dos nossos lugares de eleição, a enfrentar o mar que tanto ama, fez-me louvar a Deus por ser tão e tão verdadeiramente amado por alguém assim.
20180905
Esta data, 5 de setembro, é, hoje, muito especial para mim. E para todos os que me amam.
Na minha vida, como acredito que em todas as vidas, há momentos de viragem, momentos decisivos, que decorrem de decisões tomadas, no meu caso quase sempre por impulso, por arder de coração. Há treze anos foi isso que aconteceu, começava, efetivamente, uma nova vida: fui para o Colégio.
Vinha de uma profissão que me devastara a todos os níveis. Em poucos anos passara do sonho ao pesadelo, com repercussões muito sérias, que ainda hoje se vão revelando, como a lava que nunca descansa sob a crosta. Naquelas que são as mais importantes dimensões da minha vida: a minha família, a minha fé e, naturalmente, eu próprio, nada ficou por revolver, nada ficou incólume, nada permaneceu como era antes. Por minha causa, por minha culpa, todos conhecemos a dor do fracasso. Sei o que é acordar, depois de um pesadelo, e desejar voltar a adormecer para não ter que viver o pesadelo da realidade. E sei o que é desejar nunca mais ter que acordar.
Foi naquele estado de profunda devastação que fui acolhido, mais que na minha nova profissão, no meu novo lugar. Aí, paulatinamente, com a ajuda de imensos, fui recuperando o que perdera, fui serenando, fui descobrindo o que nunca soubera meu. Passei do pesadelo ao sonho, do detestar as tardes de domingo ao acordar feliz da segunda feira, voltei a cantar de manhã, a sair feliz de casa, a regressar ainda mais feliz a casa. Renasci. Como pessoa, como homem, como pai, como marido, como profissional, como amigo... como cristão.
Não acredito que sejamos apenas aquilo que fazemos. Não é a profissão que nos define. Quando calha bem e temos muita sorte, se calhar somos nós que definimos um bocadinho a profissão. Mas para que isso aconteça temos necessariamente que estar de bem com Deus, com os que nos amam, com os que nos rodeiam... connosco próprios, que, no meu caso, é sempre a última e a mais difícil das batalhas. Que jamais, teria sequer a capacidade ou a coragem de travar sozinho.
O Colégio, o Instituto, as pessoas que aí dedicam os seus dias, são, também por isso, parte da família. Sabemos todos, cá em casa, como nos é importante, como nos serviu de impulsionador, como nos serve de plataforma para que, hoje, possamos com verdade dizer que somos felizes. Não é a base sobre a qual assenta a nossa felicidade, que essa tem outros nomes: partilha, cumplicidade, reconhecimento, caminho, fé, família; mas foi, é, e acredito que será, impulsionadora de vida, da nossa vida, do nosso presente e futuro, uma bênção que Deus colocou no nosso caminho.
Hoje é um dia importante para mim. E para todos nós, cá de casa.
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