20230613

fagilidades

Tenho a sorte de trabalhar num sítio de fragilidades. De e com pessoas com uma carência de tudo: amor próprio, perspetiva de vida, sentido, objetivos, motivações, não falta nada no cardápio da miséria humana. Pessoas que nem sequer andam já à procura, tal é o desânimo e a perda. Nem sabem sequer que perderam porque já não têm há tanto tempo que esqueceram que alguma vez tiveram. Dos miúdos que chegam às nossas mãos, por volta dos seis anos, quando entram para a escola, perdemos sempre demasiados. Quando chegam aos pós 15, perdemos com certeza muitos mais que aqueles que conseguimos agarrar, com ambas as mãos, com muita força, muitas vezes sendo apenas nossa a única vontade de os retirar dos escombros da vida. É, por isso, muitas vezes, uma batalha inglória, em que temos que lidar com a perda e a frustração e o nosso próprio desânimo. Que se agudiza quando, numa das alturas como esta em que, chegando já cansado ao trabalho, me deparo com o olhar sempre doce e meigo - e completamente perdido - de um dos nossos miúdos, agora adulto e pai de filhos, que se arrasta na venda e consumo de droga. Andará, agora, na casa dos trinta, mas o que vejo sempre que o vejo - e fico sempre feliz quando o vejo - são aqueles olhos doces, meigos e completamente perdidos de menino traquina com quem tive grandes conversas. e que baixam agora quando me vê e o interpelo, a sorrir, e sorri de volta apenas quando lhe pergunto pelo filho e responde perguntando pelos meus. "Já sou avô, vê lá tu" "que bom, stor, grande abraço!" 

Sou todo cheio de faladuras, de teorias, de leituras, de aprendizagens, e todas as faladuras se calam quando estou diante daquele olhar. Tudo o que leio, tudo o que aprendo, tudo o que julgo que sei se desmorona diante daquele e dos outros olhares que rodeiam o Espaço e que são nossos, são ainda nossos, apesar de estarem colocados em caras gastas e chupadas de miúdos de vintes e trintas e pais de filhos mas que nunca deixam de ser nossos. Os olhos, os miúdos, as suas vidas, as suas fragilidades.

É. Tenho a sorte de trabalhar num sítio de fragilidades. Que é pródiga em me dar chapadas na cara e em me dizer que somos, que eu sou, fragilidade. Tudo o resto é conversa para entreter meninos.

20230603

Recentemente, acusaram-me de, teimosamente, pedir o impossível. Sem pensar, respondi que, se não sonho o impossível valerá a pena sonhar? Tinha respondido imediatamente, naquela, em mim, demasiado frequente via que vai do coração à boca sem dar a volta ao circuito cá por cima, como deveria ser. E ficou a pairar, como invariavelmente fica o surpreendente, cá por dentro, à espera da luz que lhe dê sentido - é curioso como eu, muitas vezes, procuro o sentido do que digo apenas depois de ter sido dito e não o contrário, que é o que faz o sensato. 

Quando digo uma coisa destas - e sobretudo desta maneira - faço-o instintivamente, e a sua origem normalmente reflete o que me acontecia antes de saber que deveria pensar o que me acontecia. Na verdade, sonhei sempre o impossível, desejei e batalhei sempre pelo impossível, enquanto me entretinha a viver a realidade que a vida me tinha destinado. Sim, porque há uma realidade que é inalterável: não alteramos o lugar onde nascemos e crescemos, não alteramos a família, não alteramos as nossas circunstâncias sociais, as pessoas que, até determinada altura nos rodeiam. Algum desse entorno em que estamos mergulhados podemos alterar mais tarde, quando fazemos as primeiras escolhas - no meu caso muitas vezes mais ou menos inconscientes, aprendidas e absorvidas nos imensos livros que ia lendo - mas as pessoas que deram e fizeram a nossa vida, a não ser que estejamos dispostos à rutura definitiva - e eu nunca estive - são-nos tão constitutivas quanto nós próprios. São âncoras, desempenhando o duplo papel das âncoras que, se nos prendem ao seguro, também nos impedem de levantar voo rumo ao sonho de futuro. Nestas circunstâncias, que foram e são as minhas, o futuro que sonhamos ganha um lugar absolutamente fundamental para que consigamos ver para além do que se nos apresenta diante do olhar. 

O curioso é que a vida que, em termos profissionais, me caiu no colo, veio possibilitar este encontro do sentido naquilo que eu, intuitivamente, sempre fui sendo. Agora, quase todos os dias, encontro - e se não encontro, instalo - nos miúdos do bairro esse sonho de futuro que as suas circunstâncias teimam coartar. E confirmo, todos os dias, como o sonho desempenha um papel absolutamente fundamental no despertar do seu desejo de ir mais além.

Sim. Eu sonho. Ainda sonho. E reafirmo o que, sem pensar, me saiu: se não sonho o impossível, valerá a pena sonhar?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...