20230119

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Volta e meia preciso de parar um pouco a meio desta subida, aliviar o peso que carrego, e sentar-me apenas o tempo suficiente para poder olhar em volta e apreciar a paisagem. Naturalmente, começo por olhar para baixo, para o caminho já percorrido, agora feito memória. Rapidamente recordo os lugares onde as pernas fraquejaram, onde os pés paralisaram e apenas avancei à custa de mãos estendidas. As minhas e as de quem mas deu. Na verdade, fui aprendendo que caminhar tem muito mais a ver com mãos que com pés, e que tem sempre a ver com dores. As minhas feitas dos outros, e as dos outros feitas minhas. Olho distraidamente em volta e surpreendo-me com a paisagem. Que descubro sempre nova, nunca antes por mim vista. Na verdade, tenho o terrível hábito de caminhar de olhos postos no chão e cabeça a vaguear lá por cima. No meu absorto peripatetismo, a paisagem desempenha um  papel completamente secundário. Os sons, os cheiros, as cores, acontecem lá fora, muito longe de mim, e acontece-me muitas vezes ficar surpreendido quando levanto a cabeça e acordo da minha letargia profunda. A paisagem à minha volta nunca me despertou grande interesse e raramente consigo fixar nela o meu olhar mais que alguns minutos. E olho para cima, para o caminho que me falta. Não vejo grande coisa, e sei que o caminho me reserva surpresas, algures. Não que adiante de muito preparar-me para elas - se o conseguisse já não seriam surpresas mas expectativas - porque sei que, depois da minha primeira expressão de desagrado - não gosto de surpresas - acabarei por lidar com elas, avançar e, eventualmente, a apreciar as suas consequências. 

Já chega de descanso. Vamos a isto.


20230103

Por estes dias, é-me impossível não estabelecer o paralelismo. E (a)notar o paradoxo. As notícias passam de uma fila para outra. De comum, a fila interminável, o respeito, a vontade de despedida, a veneração, o reconhecimento da importância da vida. E, parece-me, fica por aí. Pelé e Bento XVI dificilmente poderiam ser mais diferentes. Um é o símbolo do endeusamento exacerbado do efémero, da popularidade, da elevação das artes mágicas de um homem cujos méritos são recordados bem acima dos da equipa e que encontrava a sua alegria no meio da multidão. O outro é reconhecido pelo seu recato, pela sua aversão a tudo o que era popular, preferindo o refúgio e o silêncio, longe de tudo e de todos. Paradoxalmente, se perguntássemos ao comum dos mortais quem deles desperta mais simpatia e adesão, Pelé teria mais um título na sua carreira. E isso diz imenso de nós, Igreja.

Desde muito novo - creio que desde que estudei e percebi a dinâmica do nazismo - que sinto enorme dificuldade em alinhar no exacerbamento das pessoas. E eu sou um privilegiado, trabalho todos os dias com e para pessoas que são enormes no conhecimento, na entrega, no sacrifício próprio, na busca quotidiana de soluções e condições para que os outros possam ter, efetivamente, mais vida. Pessoas cujas capacidades que me fazem sentir pequenino e junto de quem gravito tentando absorver tudo o que elas me possam e queriam dar. Pessoas dos mais variantes quadrantes, das mais variadas origens sociais, mais novas e mais velhas, que podiam ser meus filhos ou meus pais e que me dão o privilégio de me permitir labutar com eles, aprender deles, construir com eles. Pessoas que são seres humanos, que têm zonas claras e cinzentas, que caem e se levantam quando conseguem ou quando são ajudadas, que riem e choram, que nem sempre entendo, que nem sempre me entendem e por vezes se chateiam comigo e eu com elas.

Eu não acredito que Deus abençoe particularmente uns em detrimento de outros. Não acredito em pessoas providenciais nem em super poderes nem em super papéis. Acredito na abertura pessoal - cheia de altos e baixos - ao que Deus vai pedindo a cada um, acredito na escuta, acredito na descoberta, acredito no caminho, acredito que Deus nos pede que sejamos despertadores, profetas, para que outros possam acreditar também. E não acredito no anonimato. Acredito em olhos e braços e palavras e pés e silêncios que se fazem especiais na partilha, que nos tornam especiais na partilha, uns com os outros, uns para os outros, conferindo e confirmando a amorosa dedicação que o Pai tem por cada um de nós.

Que me recorde, de entre as personalidades mais ou menos públicas, apenas me comovi diante da campa do Ir. Roger, de Taizé. Talvez porque esperasse um mausoléu do género daqueles que se destacam nos nossos cemitérios e o que encontrei foi um pedaço de terra mal amanhada, com uma cruz de madeira meio tosca e meia dúzia de pequeninas flores silvestres plantadas. E foi como que uma chapada na cara.

Deus fez-se pequeno. Por nós e para nós. Mas nós insistimos tanto na mania das grandezas! 

20230102


Os Dias de Reflexão que este ano orientei tinham um verbo forte: ver. Partíamos do extraordinário filme O Circo das Borboletas, que pode ser facilmente visto no youtube, encetando depois um diálogo em que abordávamos cada uma das personagens, tendo em vista aquela que é a personagem principal: Mendez. Na condução desse diálogo, a determinada altura fazia duas perguntas decisivas. A primeira era quem seria a personagem mais diferente de todas elas. Os mais apressados respondiam que era o Will, mas imediatamente percebiam a armadilha: estavam a relevar o imediato: a aparência física. A pergunta mais difícil, no entanto, vinha a seguir, quando lhes pedia um verbo para o que tínhamos acabado de ver e discutir. E o verbo é Ver "se pudesses ver o que existe sob as cinzas de cada um..."

Este blogue apela à minha maneira diferente de ver. Não é melhor nem pior, é muitas vezes diferente. E isso tem acarretado alguns dissabores na minha vida. Porque o meu olhar dirige-se instintivamente àquilo que existe para além da evidência. Digo muitas vezes que "sou muito olhos", isto é, a característica física que mais me interessa nas pessoas é sempre a profundidade do seu olhar. Mas isto faz com que, por exemplo, não faça a mínima ideia de que cor são os olhos das pessoas. E isso confunde muito as pessoas, levando-as a pensar que sou um tretas. Com a vida acontece-me o mesmo: reparo em pormenores que não interessam nem ao Menino Jesus e outros que são mais comuns - e porventura muitíssimo mais importantes, sobretudo para os próprios  - ainda que, eventualmente, repare neles, são facilmente esquecidos. Para mim, são meras circunstâncias que, tendo o seu peso, não constituem o fundamento de cada um, que me parece sempre muito mais interessante conhecer.

Em ambos os avatares, o que mais perenemente me ficou - para além da técnica - foi justamente o "eu vejo-te". É uma forma bonita de dizer a alguém o lugar que ocupa na vida: eu vejo-te, logo, tu és para mim. E poder ser, exatamente como se é, para alguém e ainda por cima ser gostado por isso, é um privilégio nem sempre devidamente apreciado.

Educar o olhar é absolutamente fundamental. Ver, com olhos de ver, ver com efeitos transformadores, ver para além do que se vê, ver o que ainda não é senão em potência de ser, é um dom. E uma responsabilidade. O que faço com o que vejo? O que faço com aqueles que vejo? O que faço ver aos próprios e aos outros?

Não espanta que o Papa Francisco apele tanto à nossa capacidade de ver. Porque isso retira-lhes o cinzentismo que faz com que as confundamos com a paisagem, dá-lhes cor, dá-lhes existência e, passando a existirem para nós, forçam-nos a agir, a considerá-las seres humanos. 

Não foi justamente isso o que fez Jesus com os que habitavam as margens?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...