20211025


 
Iludo a distância que medeia o Porto e Cabo Verde com o WhatsApp. Uma das minhas filhas está lá a trabalhar, numa carreira internacional que a seduz, mas que agora lhe dá a conhecer um sabor que a desagrada. Há bem pouco tempo, depois de vir de Bruxelas, dizia-me que não se via a fazer o que eu e a mãe fazemos: a permanecer no mesmo local vários anos, com rotinas estabelecidas e vidas organizadas. Há momentos acabou por me dizer o contrário, que se calhar já não tem idade para andar a saltar e sente necessidade de alguma estabilidade. Mesmo descontando o facto de ter passado do centro da Europa civilizada para África - que conhecia, mas apenas como campo de missão - e do choque emocional que está a sentir num país onde tudo é diferente, eu entendo-a bem. Também eu estive em missão em África e, se intuía que não gostaria de África, vim com a certeza que detesto África. Curiosamente, não sei bem o que detesto, já que adorei as pessoas e a paisagem, das quais tenho imensas saudades. Mas não consegui lidar com o caos, com a falta de esgotos, com a confusão e o pó e o clima e aquela desorganização total que me levou a pensar, pela primeira vez, que pagar impostos é, afinal, uma coisa boa. Calculo que seja algo desse tipo o que a minha filha está a sentir. Sobretudo depois de um ano intensíssimo vivido em Bruxelas - a que ela chama o centro do mundo político europeu. Mas no fundo isso não importa para nada. O que importa é que ela é nossa filha e a nossa vontade é metermo-nos num avião e irmos lá nem que seja para lhe afagarmos a cabeça e dizermos que está tudo bem, que é normal, e recordar-lhe que ela tem sempre o seu lar para onde voltar. Claro que não lhe dizemos isso, que a empurramos para fora, e falamos do tempo péssimo em Portugal e como deve ser bom viver perto da praia naquele clima de Cabo Verde, e elogiamos a sua casa e as frutas que vemos em cima da mesa, e a forçamos, no fundo, a olhar para o lado A da sua vida. Não fácil. Nem para ela, nem para nós. Mas é o que tem que ser.

20211022

Acho sempre curioso quando nós, os que dizemos que temos fé, agimos como se ela não existisse. Mais até que aqueles que dizem não a ter.

Para qualquer pai ou mãe crente, a educação dos filhos é algo problemática. Enquanto são miúdos e têm que fazer o que nós lhes "pedimos", a coisa ainda vai. Mas eles não o fazem sempre. Nós, lá em casa, educamos os nossos filhos a desenvolverem a sua capacidade de escolha e de argumentação o suficiente para que eles, a determinada altura, pudessem escolher o seu caminho, que poderia ou não ser coincidente com o nosso. E não é. Claro que há aqueles princípios básicos civilizacionais - o respeito, a boa educação, a não discriminação... - que são inegociáveis. O que, pelo menos para nós, não é o caso da fé.

A fé é um encontro, íntimo, profundo, autêntico, entre Deus e cada um. Ao considerarmos a fé desta maneira, não faz sentido a imposição da fé aos nossos filhos. Na verdade, todos eles fizeram o percurso catequético e sacramental de um católico, mas isso não tem a haver com a fé, mas com a religião. Por isso, enquanto alguns deles permanecem nesse caminho, com prática eucarística dominical, por exemplo, outros já o deixaram de fazer por escolha própria. 

Para ser sincero, isto não é absolutamente claro para nós enquanto pais - aliás, recordo-me de um número muito reduzido de coisas na educação dos nossos filhos que eram absolutamente claras - e, mesmo entre mim e a Isabel há posições e opiniões muito díspares. No entanto, até pela minha história pessoal do encontro de Deus comigo - e há sempre uma história pessoal - eu acredito mesmo que Deus vem ao nosso encontro. Assim, o que me preocupa é se os meus filhos estão atentos aos potenciais momentos de encontro com Deus. Se eles se escutam, meditam, se promovem o encontro consigo próprios ou vivem no turbilhão da luz e do som e do movimento ensurdecedores do espírito.. E o que fazem com o que escutam, como o operacionalizam, como saem de si mesmos para irem ao encontro dos outros. E do Outro. E aí a resposta é clara: até pelas suas escolhas profissionais, pela maneira como vivem o seu quotidiano, eles vivem com Deus dentro. Podem não ter prática religiosa convencional, mas o seu modus vivendi tem Deus dentro. E isso, para mim pelo menos, é o mais importante.

E é aqui que retorno à minha primeira afirmação. Nós, os que dizemos que temos fé, agimos muitas vezes como se não a tivéssemos. Falamos em Encontro Profundo, e caminhada de fé e no final vemos os sacramentos não como momentos em que esse encontro acontece mas como práticas de uma socialização eclesial que, sendo importante, não é, de todo o mais importante. Na verdade, a nossa grande tentação, enquanto pais, é a de forçarmos esse encontro, sem a liberdade que Deus nos deu para sermos nós a decidi-lo na profundidade e no recolhimento de nós próprios. E isso, quando a mim, denota pouca fé no próprio Deus, que, quaisquer que sejam as circunstâncias, vem sempre ao encontro de cada um. Em total e mútua liberdade. E tem que ser nessa liberdade que cada um decide a sua resposta. A cada momento!

20211021


 

Como se mede, hoje a distância? Quão longe é, hoje, o longe?

 

I

Há já algum tempo que vários dos meus filhos vivem e moram longe de casa. Daquela que era a sua casa. De entre eles, alguns ainda vivem no país e outros – uma das raparigas – não vive sequer no mesmo continente. Entre nós, falamos quase todos os dias, certamente todas as semanas, e acompanhamos os seus estados de espírito com uma frequência que, provavelmente, não acontecia quando eles estavam à mão de semear. Não admira: todos temos esta coisa de quase desprezo pelo corriqueiro que sabemos que amanhã se repete com facilidade. Na nossa relação familiar à distância, as redes sociais são uma verdadeira bênção: conhecemos as suas casas como se já lá tivéssemos estado, temos conversas em família com todos ao mesmo tempo, combinamos prendas, por vezes cozinhamos juntos, e até a árvore do último Natal foi montada a partir de bitaites enviados pelo WhatsApp. Excetuando aquelas alturas em que sentimos que eles estão com dificuldades – e que nos dão ganas de nos metermos no primeiro avião para lhes dar colo – a distância física não equivale, de todo, à distância afetiva. Estando longe, estão perto. Na realidade eles não estão fora, estão dentro, bem dentro, e o que nos separa é nada, absolutamente nada. 

 

II

Nos Açores, no topo da montanha, conseguia ver toda a ilha. E todo o mar à minha volta. E a única coisa que conseguia pensar era: onde vai esta gente toda ao domingo? Pela primeira vez vi-me confrontado com um sítio demasiado pequeno para os meus anseios. Nunca antes me tinha acontecido esta sensação de claustrofobia em céu aberto. Mas já me tem acontecido, depois desse episódio. Várias vezes! Hoje em dia ninguém fica deste lado do mundo na viagem de lua de mel, as férias passam-se nas Maldivas, ou em Cabo Verde, ou em qualquer outro lugar que, há dez anos, nos exigiria anos de poupanças e planeamento. A sensação que tenho é que a Terra está a ficar demasiado pequena. Para onde iremos daqui a vinte anos? O que será longe, nessa altura? Por isso os ricos querem viajar agora para o espaço: a última reserva exclusiva dos endinheirados.

 

III

A distância nunca foi tão iludida. E nunca foi tão ilusória. Todos conhecemos pessoas que, morando no mesmo espaço, habitam noutros lugares, onde se sentem queridos, onde se sabem entendidos, aceites sem subterfúgios, sem discussões nem exigências outras que não aquelas que estão dispostas a conceder. Neste, como noutros tempos, o nosso mundo afetivo é composto por aqueles que conhecemos e a quem nos damos a conhecer. Mas enquanto noutros tempos esses eram, fundamentalmente, os que gravitavam no mesmo espaço físico, agora o espaço é outro. Não o fora de nós, nem o de dentro, mas o algures, o não-sei-bem-onde, no qual apenas entra quem permitimos que nos habite, com ou sem tenda montada, sem pagar renda, mas despejo programado. São lugares precários, estes, onde se habita o efémero e, inevitavelmente, o ilusório. São lugares onde rapidamente se deixa de estar, tal a facilidade com que se parte para um outro lugar, que o virtual exige armas, mas não bagagens. Também por isso há, hoje, uma evitabilidade da exigência, por contraposição à antiga inevitabilidade do encontro, quando não tínhamos outra alternativa senão habitar a mesma casa, a mesma aldeia, a mesma vizinhança, e era mais difícil evitarmos o confronto com os outros... e connosco próprios. E, passito a passito, como na canção, vamos ficando distraidamente longe... 

 

IIII

Quando Z chegou ao Espaço, bastou o seu olhar para sabermos logo qual deles chegara. Z é um miúdo com aquelas experiências que, quando chegam, chegam sempre demasiado cedo. Nos seus oito anos já defendeu a mãe e a irmã da porrada do pai, e apanhou por tabela; já viveu, escondido, numa instituição, já viu refeita a sua família com um – agora sim - pai, e agora, infelizmente, guarda tudo no seu coração. Infelizmente, porque nem sempre são as coisas boas o que se guarda no coração, e o Z não as viveu ainda o suficiente para poder substituir as que o habitam. Inusitadamente doce, terno, sobretudo para um miúdo do bairro, o Z traz-me sempre à memória o Dr Jekyll e o Mr Hyde, do Stevenson, só que desta vez não o leio em livro, mas nos seus olhos, ora suplicantes, ora furiosos, prontos a explodir. Quando nos chegou não sabíamos o que fazer, e fazíamos tudo mal. Mas fomos aprendendo: ficamos perto, atentos, deixamos que o Hulk salte cá para fora e depois sentamos, escutamos, mimamos, recordando-lhe ao ouvido o quanto gostamos dele, e que está seguro connosco. E sabemos que assim que a lágrima cai, suavemente, é sempre seguida de um abraço do tamanho do mundo, que nos restitui ao que a vida deveria ser. E o Z a si próprio, cada vez mais perto do que sonha ser.

20211007


 

Recebi uma mensagem do meu filho: "isto é um escândalo!" É, filho, é mesmo um escândalo. "É vergonhoso!", respondi. Que haveria eu de dizer? Educamos os nossos filhos na Fé e na Igreja, onde fizeram o percurso catequético inteiro, foram dirigentes do grupo de jovens e estão envolvidos em vários grupos cristãos. Apesar de nem todos, agora adultos, terem prática eucarística dominical, vivem todos com Deus dentro, o que significa que as suas escolhas de vida, mais importantes ou menos importantes, têm sempre como pano de fundo a fé em Jesus Cristo, o seu inspirador nas atitudes e valores com que pautam as suas profissões e as suas vidas.  Desde sempre que temos longas conversas sobre a fé e a pertença à Igreja - que é difícil para eles - sem assuntos ou temas tabus, sem autores ou ideias proscritas, sendo tudo e todos passíveis de discussão. Discutimos, por isso, inúmeras vezes a posição da Igreja face aos temas fraturantes, cuja importância a Igreja despreza esquecendo que esses são, efetivamente, os seus temas, porque são aqueles que eles têm que debater nos mais variados areópagos que habitam. Lá, nas faculdades onde estudaram, nos hospitais e demais empresas onde trabalham, nas discotecas e bares que frequentam, ninguém sabe nem quer saber quem foram os teólogos mais marcantes na História da Igreja nem o que defendiam. Mas lêem jornais e vêem notícias e consultam a internet e sabem por isso quem é o Papa Francisco, de quem gostam, até porque acham que está muito à frente. Por isso, o que me preocupa enquanto pai, católico, mergulhado na Igreja até aos ossos, é como esta Igreja, que eu amo, que é uma parte muito importante da minha vida, fala aos meus filhos e aos seus amigos que não falam esta linguagem. O que diz ela? Que Jesus apresenta? Que modo de vida propõe? Como propõe? Eu conheço bem o que diz, eu até sei distinguir o trigo do joio, as parangonas daquilo que é efetivamente escrito. Mas não é para mim que a Igreja, hoje, tem que falar. E, se não quer falar a linguagem dos meus filhos ou nos lugares onde eles habitam, que se cale. Pelo menos que se cale. Se se calar, eles, os meus filhos e os filhos dos muitos católicos como eu, pelo menos não se vêem na necessidade de defender o indefensável ou, no limite, não são obrigados a baixar a cabeça com vergonha do que nós, os cristãos, também andamos a fazer. E a permitir que façam. Face às pedofilias, às fugas de capital, aos comércios duvidosos, às opolências, à surdez seletiva do mundo, às inúmeras segregações motivadas pelo género, pelas opções sexuais, pelos acontecimentos da vida, pela tentativa de cada um de exercer o seu direito de poder ser visto com a dignidade de filho de Deus qualquer que seja a sua circunstância, face a tantas enormidades que todos os dias leio e presencio por parte de pessoas da Igreja, que hei de eu dizer aos meus filhos e aos filhos dos outros? Curvo a cabeça em sinal de respeito e vergonha, peço perdão como o Papa, e luto por dentro, todos os dias, para que esta Igreja, que amo e à qual pertenço, consiga estar mais próxima do que Jesus quis para ela. Não é assim tão difícil: basta olhar para o Filho de Deus e tentar imitá-Lo. Difícil é consegui-lo.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...