20210720


Normalmente, trabalho o evangelho de domingo durante a semana. Leio-o, vou-o rezando com a vida e depois, ao sábado, sinto-me apto para preparar os cânticos para a eucaristia. E às vezes, ao domingo, enquanto escuto a homilia, percebo que a minha percepção foi completamente ao lado. Assim aconteceu este fim de semana: eu apenas via o Bom Pastor e ambas as homilias das eucaristias em que participei abordaram a importância do descanso. 

Dificilmente chegaria lá, nesta altura. Porque não é, ainda, altura do descanso e tudo em mim aponta em sentido contrário. Tenho diante de mim a perspetiva de duas semanas absolutamente cheias de trabalho, de actividades fora da caixa, que me envolvem o dia inteiro durante vários dias. Não chegam na melhor altura, depois de um ano que ficará para os anais da história como intenso e extenuante, mas serão como que a cereja em cima do bolo, permitindo, no seu final, que viva o que não consegui viver durante todo o ano letivo: a oração, o serviço e a entrega, com malta nova, durante vários dias.

Vai ser bom, mas, em tempo de balanço de ano - e de vida vivida - vou percebendo que o tempo me vai chamando para outro tipo de atividades. É bom quando o tempo nos fala, e é melhor quando nos permitimos escutar o que o tempo os diz. É uma aprendizagem, também, quando conseguimos escutar o que o nosso corpo e o nosso espírito nos querem dizer. Nunca acreditei nessas coisas da juventude do espírito - sempre preferi abraçar o tempo de cada tempo - que o que tenta é fintar, ilusoriamente, os seus limites em vez de encontrar as suas vantagens. 

O descanso há de chegar. A seu tempo. Por agora, trago à memória aquela meia maratona da Nazaré que fiz ainda miúdo: nos últimos dois quilómetros já víamos a meta, e isso criava a ilusão que faltava pouco... mas faltava o mais difícil, que é a gestão da mente que tem que contrariar o corpo que está nos limites. É um pouco isso que acontece todos os anos por volta desta altura: já vejo a meta, mas o desejo do descanso torna o risco de perder o foco ainda maior. 

Vamos lá. Já falta pouco!

20210715


 

“As alegrias quotidianas permanentes são, para mim, tão importantes como os dias de júbilo, que passam fugazes.”

Aquilo em que creio, Hans Kung

 

Final do dia, o habitual trânsito – devagar, devagarinho e parado – da VCI, o som suave do  Kind of Blue a separar o ambiente de dentro e fora do carro como se do Mar Vermelho se tratasse. À cadência dos minutos passados – tão lenta quanto o movimento dos carros que me envolvem -  sinto que o cansaço do dia intenso vai dando lugar à tranquilidade, serenando a cabeça, depois o corpo e, finalmente, sossegando a alma. Este é, a par com muitos outros ao longo de cada dia, um momento de puro prazer, de pura felicidade.

Há não muito tempo desesperava, mais ou menos àquela hora, mais ou menos naquele lugar, mais ou menos com aquele trânsito. Ansiava por chegar ao destino, por chegar a casa, para poder, enfim, descansar de um dia igualmente extenuante. E aquela quotidiana viagem era terra de ninguém – que sempre foi, para mim, algo parecido com a ideia de inferno - nem carne nem peixe, nem trabalho nem descanso, mas apenas tempo perdido algures entre um e outro, deixando-me na boca, todos os dias, o amarguíssimo sabor a vida desperdiçada.

O que mudou? Não o trânsito, não o cansaço, não o desejo de chegar a casa. Nem sequer a música, que antes me irritava solenemente e agora sinto como um bálsamo refrescante e retemperador. Eu mudei. Eu. Ou melhor: foi meu olhar que mudou, e com ele a devida adequação às circunstâncias. Em vez de ansiar com todas as forças por chegar a casa, em vez de me abandonar a mim próprio naquele tempo de ninguém, em vez de me desesperar, decidi aproveitá-lo. Em vez de me revoltar, de dar largas ao desespero, decidi apropriar-me da situação, fazendo-a minha, aproveitando-a para viver nela o tempo que, afinal, nunca conseguia viver quando chegava a casa. Porque a verdade é que não me recordo de algum dia ter chegado a casa e ter conseguido ouvir o Kind of Blue, pelo menos não com a envolvência que este álbum sempre justifica. Porque, na verdade, estava a trocar aquele tempo que me era dado a viver, dentro do carro, pelo desejo sonhado - nunca efetivado – da felicidade que antecipava sentir uma vez chegado a casa. E a verdade, verdadinha, é que desperdiçava a viagem em nome de um ideal de destino.

Hoje, com menor dificuldade, vou saboreando tudo o que me é dado a viver. Vou conseguindo esta lucidez de aproveitar os pequenos momentos para ser feliz. Como quem pega num quadrado de chocolate e lhe dá o tempo necessário para que se derreta na boca. Suavemente. Docemente. Sem sofreguidão nem antecipação. E posso assegurar que, quando revisito o meu dia, confirmo com genuína alegria que são cada vez menos aqueles que sinto ter desperdiçado. 

 

também aqui: https://hospedeignorado.blog/2021/07/14/a-voz-aos-amigos-xxiv/

 

20210713

 

A maneira como sou reconhecido é, desde sempre, um dos focos da minha atenção. Tempos houve em que o era excessivamente, em que me preocupava de uma maneira quase obsessiva com o que os outros ficariam a pensar de mim, e isso acabava por me limitar e me levar a fazer asneira: para que ficassem apenas boas memórias, por vezes não fui carne nem peixe, ou fui ambos, o que é ainda pior. E ainda hoje recordo com frequência últimas palavras, ou últimas atitudes, ou últimas decisões que, se tomadas hoje, seriam diferentes e penso que, perante a eventual notícia da minha morte, gostaria de ir ter com algumas dessas pessoas e desfazer o que foi feito ou dito, ou deixado por fazer ou dizer. A verdade é que é importante para mim ser bem recordado. Com um sorriso, se possível. 

À medida que a idade avança vou percebendo que isso não será, de todo, possível. Não com toda a gente, não com todas as situações, não com todas as circunstâncias. Ainda ontem, curiosamente, tive necessidade de falar grosso com alguém que estava a ser mal educado e sobranceiro com quem achava que podia e eu tive que - de forma pouco meiga - por cobro à situação. Claro que o que ela vai recordar de mim não será coisa boa, mas incomodar-me-ia muito mais não ter feito nada. Porque a verdade é que as memórias que eu eventualmente deixo em alguém são importantes, mas não são tudo. E muito menos à custa de tudo. 

Mas que é bom ser (bem) recordado...

20210707

 

De todas as minhas facetas, aquela que me causa maior perplexidade e profundo incómodo é esta contradição que me habita. E que habito. Perplexidade porque tinha toda a esperança que, depois de uma vida atento às possibilidades de aprendizagem que todos os dias me trazem, chegasse por volta desta altura com maiores certezas. Bebo de todo o lado, não deito nada fora à partida, são escassas as certezas que tenho na minha vida, e, na minha imaginação, isso deveria funcionar como uma peneira, onde apenas o que é importante e certo e definitivo ficasse retido. Tolo! 

Desde 19 de fevereiro que começo os meus dias, ainda antes de a manhã e eu próprio acordarmos, na elíptica - paralítica, é o nome que se lhe dá cá em casa. Apesar da música alta, batida e convenientemente ritmada, me ecoar nos ouvidos, começo invariavelmente de olhos fechados, meio a dormir, deixando que corpo e pensamento despertem com os seus ritmos próprios, à vez. E deixo-me fluir. Hoje, ao fim de todo este tempo, percebi como isto é uma contradição. A música alta, o corpo a suar por quantas tem e, ao mesmo tempo, o pensamento sereno, longe, em constantes devaneios oratórios, filosóficos, preparatórios, avaliatórios, o que quer que seja que me venha à cabeça naquela altura. Pela janela aberta que tenho diante dos meus olhos, vejo a relva fresquinha, matinal, orvalhada, numa manhã belíssima que desponta. Fosse eu normal e estaria lá fora, sentado numa manta, de olhos fechados, a acolher o dia. Mas não. Sendo quem sou, sendo como sou, tinha mesmo que começar o dia nesta contradição. Que espelha os meus dias. Que espelha a minha vida.

Por isso me causa profundo incómodo. Não apenas porque eu próprio desejaria a constância da serenidade. Mas também porque para os outros sou este espelho de contradição e é-me dito muitas vezes - sobretudo por aqueles que me habitam mais profundamente - que não bate a cara com a careta. Que, invariavelmente, as expectativas que crio nos outros saem goradas. Que tanto sou motivo de êxtase como de profunda desilusão. 

Incomoda-me ser contradição. Aprendi já que nem tudo é desvantagem - nada nem ninguém é 100% bom nem 100% mau - que me permite ver outras coisas, sentir outras coisas, navegar por outras águas sem temer o mergulho ou a falta de ar. Permite-me sintonizar genuinamente com pessoas das mais diversas proveniências, das mais diversas idades, que habitam as mais diversas circunstâncias. Mas também sei o que temo. Muitas vezes.  Que, algures por entre mares mergulhados, me esqueça de vir à tona. Já aconteceu. Muitas vezes. Inúmeras vezes. Por isso preciso, sempre, que alguém me estenda a mão. Ate hoje, Graças a Deus, nunca faltou.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...