20200626

202006260953

Provavelmente será da idade, que sabiamente atribui peso ao que antes era leve, mas um dos grandes privilégios do meu dia de aniversário é fazer a revisitação da imensidão das pessoas que me habitam. Os parabéns que me enviam pelas diversas redes sociais têm gente dentro, têm olhos e conversas e cantorias e caminhadas e partilhas. O meu aniversário tem sido, graças a isso, um rememorial, um revisionamento daquele que tem sido o meu percurso de vida, uma vida que, como dizia tantas vezes o Padre Almiro, mais vale que seja gasta que enferrujada. Viver com quem vivo, viver como vivo, é uma Graça imensa e gratidão tem sido o sentimento que mais tenho por companhia neste dia.
Isto é tanto mais curioso quando eu recordo com facilidade como eu detestava este dia. E, nisso como em tudo na minha vida, o mérito da Isabel e da filharada é decisivo. Empenha-se de uma forma ainda mais afincada para que eu me sinta verdadeiramente amado e para que sinta este dia como meu. E isso, confesso, para além de saber sempre a novo, é imensamente bom!
Uma das grandes questões da minha vida é a forma como irei ser recordado. A forma como permanecerei sempre foi, para mim, fulcral, o que é natural para o imaginário de um miúdo que tinha os grandes e épicos romances como companhia. O meus heróis souberam sempre que morrer na batalha valia a pena, sobretudo se aqueles por quem morreram recontarem a sua entrega nas conversas à volta da fogueira, aí onde os grandes feitos são perpetuados por entre noites frias e almas quentes. No meu imaginário - que permanece de certa forma infantil e sonhador indiferente ao passar do tempo - o meu dia de aniversário é, por isso, uma espécie de epitáfio antecipado que, paradoxalmente, me impulsiona para uma vida plenamente renovada.

20200619

202006191915

No início da pandemia, sobretudo no início do confinamento, haviam algumas expectativas no ar. Sabia que iriam ser tempos estranhos, muito estranhos, ainda para mais quando eu estou mais habituado à correria que à quietude. A primeira semana lembrou-me o primeiro dia de um retiro que eu fiz: apesar de meio perdido porque não sabia o que me esperava e sobretudo o que esperavam de mim, aproveitei para colocar o sono em dia, as coisas em dia, o trabalho em dia, e até o jardim ficou mais em condições. Rapidamente, no entanto, percebi que iriam ser tempos exigentes. Adaptações em cima de adaptações, novas formas de fazer, novas formas de contactar com tanta gente, e, sobretudo, procurar novas soluções para conseguirmos ajudar quem precisava ainda mais da nossa ajuda.
Como tudo isto cansa!
Hoje de manhã estava a olhar para a minha agenda para, apesar dos imponderáveis, tentar preparar o tanto que aí vem. Como sempre acontece - com incidência especial na fase final de cada ano lectivo - estava carregada de atividades e reuniões e preparações e encontros que, desta vez, não aconteceram. Eu próprio contava, por isso mesmo, estar menos cansado, menos preocupado, menos tenso. A verdade é que nada disso acontece. A incerteza do que se avizinha obriga a um esforço extra de atenção aos sinais, procura constante de respostas e foco na execução. Numa altura em que, normalmente, tudo corre em velocidade cruzeiro - até porque é o culminar de um ano devida e minuciosamente preparado - continuamos a realidade a lidar com a incerteza. E apesar de todo o compromisso, de todo o empenho, de todo o esforço, não raras vezes fica na boca um sabor a menos, a insuficiência, a impotência, face às necessidades dos nossos miúdos e das nossas famílias. E isso provoca um desgaste...
Se me perguntassem qual o ensinamento profundo que o COVID me proporcionou, eu responderia que tinha sido justamente este: a substituição da quantificação pelo valor intrínseco dos actos. Se alguém olhar para a quantidade de coisas marcadas na agenda que foram desmarcadas, não faz ideia do trabalho que foi feito. Porque esse, no essencial, não tem medida.

20200618

202006181013

Estou a poucos dias dos 54. Tem sido um longo e belo percurso. Aqui chegado, olho para trás e fico feliz, percebo que, sobretudo atendendo ao meu ponto de partida, é imenso o que alcancei. Muitíssimo mais do que alguma vez, em miúdo, sonhei ou desejei ou pensei ser possível alcançar. E isso é muito bom. E tranquilizador.
Há pouco tempo falava acerca da gratidão. De como eu gosto de me sentir grato. De como eu preciso de agradecer. De como eu tenho motivos para agradecer. A tanta gente! A alguns quotidianamente, de forma evidente e veemente, várias vezes ao longo de cada dia, não desperdiçando oportunidades para o fazer. A outros de forma menos regular mas não menos sentida ou importante. Tenho a imensa graça de conviver com pessoas sábias que se preocupam, que cuidam, que me ensinam, ajudam, corrigem e me apontam metas e estabelecem desafios. São os meus motores fora de bordo sem os quais a minha vida seria uma imensa, aborrecida e improfícua calmaria. São pessoas que transvestem Deus, são a Sua presença, a Sua imagem, o Seu amor e carinho, facilitando-me extraordinariamente a vida porque me ajudam a ser de Deus, dificultando-me extraordinariamente a vida porque me ajudam a ser de Deus. São pessoas com lugar cativo cá por dentro, que armaram tenda e por aqui acamparam e volta e meia aparecem para conversar comigo durante as minhas solitárias caminhadas e reflexões. São pessoas sem ontem ou amanhã, por quem o Tempo não passa, e por isso, quando os nossos olhares se encontram conversamos com a naturalidade de sempre.
É-me muito importante a gratidão. Por um lado coloca-me os pés no chão e recorda-me o quando sou devedor; por outro lado recorda-me o quanto sou amado. E essa é daquelas coisas de que eu preciso ser recordado constantemente!

20200609

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Trabalhar onde trabalho e com quem trabalho assenta-me os pés no chão. Todos os dias lido com gente boa e menos boa que habita as margens da sociedade: rica e pobre, brancos e ciganos, negros e mestiços. Já fiz voluntariado em Quelimane e por este país dentro, sempre junto de miúdos e menos miúdos, para quem "família", "carinho" e "futuro" são meras palavras com conteúdo pouco menos que duvidoso... e sofredor. Já fiz catequese numa Instituição em que, quando disse que "Deus é Pai" obtive como resposta "se for como o meu, dispenso bem". Sou um privilegiado, portanto, por ter a oportunidade de viver os meus dias com pessoas assim, que me trazem a realidade e ma metem pelos olhos dentro sem me dar sequer hipótese de olhar para o outro lado. Há já imenso tempo que me desenganei, há já muito tempo que percebi que as dores são partilhadas pelos miúdos e pelas pessoas que habitam ambas as margens e que se umas têm vícios caros para se esquecerem da vida e se sentirem apreciadas, outras têm vícios caros para se esquecerem da vida e se sentirem apreciadas. Separadas pela vida, unidas pelo vício, seria um bom mote publicitário. Aprendi também que a cor da pele tem o seu peso mas o meio tem um peso incomensuravelmente maior. Aprendi que os sonhos e os projetos de futuro de um negro com dinheiro são em tudo iguais aos sonhos e aos projetos de futuro de um branco com dinheiro. E que no bairro os sonhos e os projetos de futuro não têm cor da pele, mas são muito diferentes dos que têm dinheiro.
E não é de dinheiro propriamente dito, aquilo a que me refiro. É de ruas limpas, de jardins cuidados, de escolas cuidadas, com profissionais que queiram estar lá e não sejam a isso obrigados. É de casas que conciliem o tamanho das famílias que as habitam com o número de divisões. É de ensino efetivo, exigente, cuidado, real, com reais e personalizadas soluções, que se interessem mais pelas pessoas que pelas estatísticas.
Isso não tem nada a ver com a cor da pele. Tem a ver com remetermos as pessoas para um canto longe da vista, desenraizando-as, retirando-lhes dignidade, tratando-as mal. Qualquer que seja a cor da sua pele.

20200608

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Sempre que, num programa de televisão, oiço a pergunta se alguém deve um pedido de desculpas ao entrevistador, raramente oiço a resposta. Porque penso na quantidade de pessoas a quem devo um pedido de desculpas.
Eu não gosto da palavra culpa e muito menos do que ela significa. Apesar da culpa que por vezes sinto. Ou se calhar por causa disso mesmo. Fiz e disse coisas profundamente infelizes, normalmente a pessoas que me eram e continuam a ser importantes. Quando olho para trás, não são poucos os momentos em que não me reconheço nas palavras, nos atos ou nos gestos, e isso causa-me vergonha. Houve um tempo, até, em que me era dificilmente olhar ao espelho por não me reconhecer na pessoas que via do outro lado. O sentimento de culpa é, por isso, em mim, algo com o que tenho que conviver no meu quotidiano. Por isso, quando oiço aquela pergunta, penso numa série de pessoas com quem gostaria de voltar a conversar, olhos nos olhos, para tentar resolver algumas coisas.
Não consigo alterar o passado nem o efeito que provoquei na vida das pessoas, mas para mim é importante, volta e meia, deitar-lhe um olhar atento e perceber o que foi fruto das circunstâncias e o que constitui falhas de carácter. Ás primeiras apenas posso ficar atento para que a sua repetição não provoque a minha repetição na asneira. As falhas de carácter, as coisas que fiz e disse que vinham mais de mim e dos meus medos e das minhas entranhas que das circunstâncias, essas sim, precisam ser profundamente analisadas e escrutinadas para que as possa atenuar. O que não pode acontecer - e acontece cada vez menos mas ainda com uma frequência que me desagrada e incomoda - é eu permitir que a minha cara não coincida com a careta.
E hoje, como ontem, como amanhã, é um bom dia para que isso não aconteça.

20200604

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Ainda andam cá por dentro os oito minutos e quarenta e seis segundos. Os últimos do George Floyd. Hoje na rádio perguntava-se porquê esses e não outros, os milhares de outros que morrem de maneira igualmente infame. Para mim a questão é simples: eu vi estes. Sim. Não será politicamente correto afirmar, mas é isso que acontece comigo.
Já referi aqui várias vezes a mobilização que me encheu de orgulho na altura em que todos nós nos levantamos por Timor. Sabíamos há muito o que lá acontecia, sabíamos das mortes e do desespero e do desrespeito pela vida. Mas nós nos comovemos quando ao som das balas se juntou o som da oração do terço em bom e percetível português. E fomos a correr ver as imagens e acordamos. foi preciso ver e ouvir para que o que se passava do outro lado do mundo tivesse a ver connosco.
Não andamos muito longe disto, neste caso. Vemos, comovemos, achamos inconcebível, como se lidássemos com o desconhecido. Daqui a alguns dias avançaremos para outra. Por vezes concordo com o Papa Francisco e acho que andamos adormecidos pela globalização e pelas redes sociais. No entanto, quando páro para pensar, pergunto-me quantos portugueses saberiam, na altura, da batalha de Luther King, ou de Gandhi, ou o que se passava nos campos de concentração das ditaduras europeias. Ou quem saberá, hoje, o que se passa no coração da China ou da Coreia do Norte. É certo que o excesso de informação nos poderá adormecer num mundo em que os atos de violência parecem galos a cantar ao desafio. Mas, ainda assim, prefiro saber a ignorar. O excesso de informação não é o ideal mas é incomensuravelmente mais desejável que a falta dela.

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Ontem à noite, depois de mais uma derrota do meu FCP, coloquei uma brincadeira no Facebook. E obtive logo uma resposta de um bom amigo, a levar demasiado a sério a minha brincadeira. Respondi-lhe que era apenas uma brincadeira e que não levo o futebol demasiado a sério. Hoje vinha a conduzir e a pensar nisso. Em como, para mim, há coisas que não são mesmo para levar a sério.
Os meus filhos tiveram todos atividades extra escola. Ligados ao desporto ou à música. Eu sempre as vi como excelentes oportunidades para aprenderem a desenrascarem-se sozinhos. As matérias do ensino eram para serem levadas a sério e eu e a Isabel encarregavamo-nos disso; as matérias extra-curriculares dependiam deles. Eles é que falavam com os professores e treinadores, eles é que tinham que conjugar horários, fazer sacos, planear treinos e estudos. Eu limitava-me a levá-los, esperá-los, apreciá-los e trazê-los. Jamais falei com um treinador ou professor de música - a não ser quando eles me solicitavam. Estas eram alturas para conversar com os meus filhos acerca de coisas como o compromisso, a gestão do tempo, o saber estar em equipa... e oportunidades para eles assumirem a responsabilidade de falar com treinadores e professores e darem a cara quando decidiam interromper ou terminar essas atividades: eram eles que lhes tinham que dizer. Mas foram sempre vistas como algo que não era essencial, que estava concentrado nos estudos.
Ontem fiquei chateado com a derrota. Fico sempre. Mas passa rápido. Passada a emoção do momento, o futebol reencontra o seu lugar na minha vida: é bom mas não é para ser levado a sério. Como muitas coisas na minha vida!

20200602

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Liguei ao meu pai. Não é muito hábito em mim, ligar aos meus pais. Vivemos a curta distância mas passam-se meses sem nos visitarmos mutuamente. Agora, a propósito do covid, falamos mais, contactamos mais. E isso é bom. Ha uma ressintonização, uma reidentificação, um reconhecimento mútuo que a vida agora se vai encarregando de pôr no devido lugar. E isso deixa-me mais tranquilo, mais sereno, mais resolvido em todas as minhas diatribes interiores que por vezes dão horas às minhas noites.
Há coisas que não me definem no quotidiano mas acabam por me definir na vida. Essa convulsão interior não me impede - a maior parte das vezes - de ser feliz nem de fazer as coisas, mas a serenidade muda a forma como as faço e sinto. É como a harmonia de uma paisagem: quando não existe eu até posso gostar do que vejo, mas quando não há caos, quando tudo se conjuga nas cores e nos espaços, desperta em mim um sentimento de gratidão pela beleza, com aquela saborosa sensação que tudo está onde devia estar.
Foi isso que senti quando a minha avó morreu: que estava tudo no seu lugar. Tínhamo-nos aproximado nos seus últimos anos de vida, ainda a tempo de termos deliciosas conversas, que me deixaram melhores memórias. Quando morreu, morreu em paz e deixou-me em paz. De certa forma, é uma pouco essa a aproximação que está a acontecer relativamente aos meus pais. Á nossa maneira, ao nosso ritmo, retomamos conversas e construímos novas memórias, pacificando-nos no caminho.
E isso é bom.
E faz-me feliz!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...