20200429

202004291920

Não sei se sei viver senão sofregamente. Anseio a serenidade, no ser, no pensar, no fazer. Desejo dar tempo à sedimentação da leitura. Uma frase hoje, uma citação amanhã. Anseio repousar o olhar sobre uma imagem, sobre uma paisagem, sobre uma bela foto. Anseio escutar cada harmonia, cada nota, cada palavra que dança por entre as notas de uma canção. Anseio a demora, o permanecer, o bastar. Anseio tudo isso porque não consigo nada disso. A ânsia é uma ladra ciumenta. Leio a correr, vejo a correr, oiço sofregamente, sorvendo as palavras e as frases sem lhes chegar ao âmago, à essência, como se de uma laranja aproveitasse apenas a casca, desperdiçando o seu sumo por entre os dedos. Em mim, todo o pensamento é demorado, toda a ação é impulsiva. E nesta contradição interior estou sempre à espera que a idade acumulada me permita colher o que nunca semeei senão à superfície: a serenidade.

202004291011

Este é um tempo de humildade. Forçada, mas humildade.
Normalmente em grosso modo, sou em quem determina o que faço. Não nas pequenas coisas e nos pequenos momentos, mas o rumo que a minha vida leva nesta altura é o escolhido por mim e pelos que amo e me amam. É uma viagem, por isso, a várias mãos, a várias cabeças, a vários corações, mas é mais ou menos definido por nós. Quando isso acontece, existe uma certa sobranceria, porventura inconsciente mas subjacente, onde até as contrariedades são vistas como meros acidentes de percurso nesse rumo que se mantém.
Humildade?
Nos primeiros tempos da pandemia dava voltas à cabeça para tentar encontrar a melhor maneira de apoiar aqueles miúdos e famílias que nos estão confiados no RAIZ. E o sentimento de impotência era quase avassalador. Por muito que tentasse, não conseguia pensar em algo de significativo, de verdadeiramente revolucionário, que de alguma forma trouxesse algum alívio àquela gente. Reunimo-nos e decidimos começar pelo que podíamos fazer. Era pouco, mas era o que podíamos fazer, dadas as circunstâncias. E foi a solução. Ainda ontem, ao vir para casa, trazia a alma cheia de olhares de verdadeira gratidão.
Humildade.
Para aquelas pessoas, sentirem que alguém se preocupa com elas é absolutamente fundamental, é a luz que lhes permite ver alguma esperança na escuridão em que se encontram. Na verdade, continuamos a não poder fazer muito. Mas conseguimos alargar a rede de apoios mesmo a quem não estava inscrito no RAIZ, conseguimos aprofundar a rede com os professores, que nos enviam o material para imprimir, conseguimos chegar a mais miúdos, a mais famílias, a mais pessoas. Todas elas anseiam desabafar e dar-nos conta das dificuldades e agradecer por as escutarmos.
As mesmas pessoas que em determinadas alturas me desesperam são aquelas que nestas alturas contribuem para me encher a vida de significado.
Humildade!

20200423

202004230814

Adoro escrever. Faz parte daquelas poucas coisas que me são interiores e anteriores e independentes de mim, como se eu fosse apenas o senhorio de entidades que me habitam e que têm vida própria, para a qual a minha vontade conta pouco. Ou quase nada. Escrever é uma paixão e as minhas paixões são muito femininas, muito senhoras do seu nariz, muito autónomas, fazem-me pensar que  quem controla sou eu quando sabemos ambos que não é bem isso que se passa. E, como qualquer paixão, é autosuficiente, autoalimenta-se, autoelogia-se, autosatisfaz-se, autobasta-se, e ainda que se envaideça com eventuais comentários alheios, na verdade não precisa deles para nada. Por isso continuo a escrever, por isso continuo a dizer e a fazer asneiras, por isso continuo a parecer infantil e inconsciente e incongruente a quem paira fora da paixão, porque não a entende. E por isso é que preciso do seu velho companheiro de jornada, mais maduro, mais evoluído, menos primário, porventura até mais racional: o amor. A paixão e o amor são como alguns dos meus filhos: têm os mesmos pais, os mesmos valores, as mesmas memórias das mesmas brincadeiras da infância, mas, porque têm personalidades diferentes, fazem coisas diferentes com o que têm dentro. Porque se a paixão é voltada para si própria, o amor esquece-se de si próprio, está atento ao fora de si, alimenta-se fora de si, encontra-se fora de si. Não são duas faces da mesma moeda, são duas moedas, diferentes, para diferentes gastos, para diferentes alimentos da alma. Como se uma valesse para o mercado da sede e outra valesse para o mercado da fome. E eu, que sempre tive mais fome que sede, senti sempre a premência na sede e menor voracidade na fome.

20200412

202004121222

Domingo de Páscoa! Já cheira ao cabrito da avó, a mesa já está posta, Cristo já ressuscitou. Domingo de Páscoa! Não parece nada. Nem eu nem os meus filhos estamos no compasso nesta altura, não se ouvem as campaínhas na rua nem a azáfama habitual neste domingo tão especial. Assistimos à eucaristia na internet, ainda de pijama, e pouco depois o nosso pároco passou aqui na rua, de carro, altifalantes ligados, a dar a novidade sempre nova: Aleluia. A Ana está em Portimão, o Ica em Bragança, a Rita na casa dela e há coisas que a internet nunca estará em condições de substituir. Domingo de Páscoa. Aleluia.

20200409

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Caminhávamos ontem, depois do jantar, nas ruas desertas, quando, de uma churrasqueira perto de nós, me veio ao nariz um dos cheiros que mais me despertam os sentidos. Falámos disso, como falamos sempre de coisas nenhumas, naquele que é, para mim, o mais verdadeiro comprovativo da verdadeira intimidade. Como tínhamos acabado de jantar, a Isabel não percebeu como aquele aroma me despertava os sentidos. Na restante parte do caminho, matutei. Na realidade, não era comer o churrasco que me punha a sonhar, era a imagem do churrasco, era o imaginar a carne suculenta no prato, as batatas estaladiças, o arroz perfeito na soltura e no sabor, era sobretudo a algazarra à volta da mesa, para a qual o churrasco é mero pretexto lá em casa. É frequente ser enganado pelos sentidos. De facto, é provável que a carne afinal viesse algo queimada, as batatas embebidas em azeite e já amolecidas pelo calor, o arroz empapado, e, sem dúvida, não teríamos a algazarra do costume, agora que metade dos filhos andam lá por fora. Mas os sonhos, esses, nunca me enganaram. Sempre me permitiram que vivesse na perfeição, no melhor dos mundos, com o sol a aquecer-me a eira enquanto a chuva cai refrescante no nabal. Esta manhã, enquanto não me sabia se acordado se a dormir e sonho e realidade se confundem numa mistura por vezes explosiva, confirmei a importância do sonho na minha vida. Na infância, confinado à minha rua, viajava a partir dos inúmeros livros que devorava, sozinho no meu quarto. Hoje, sonho de olhos abertos, fruindo a minha realidade - que está além do que sempre me atrevi a sonhar - mantendo inapelavelmente, no entanto, o "e se..." sob a pele da alma.

20200406

202004062250

Estranha semana esta, meu Deus!

Não posso estar como quero.

Não posso estar com quem quero!

Não me posso aproximar, tocar, abraçar,

aqueles que me são próximos

a que agora estão remetidos

à distância profilática de um contágio!

 

Estranha semana esta, meu Deus!

Penso na Tua Mãe, Senhor,

Nos Teus amigos

Nos Teus companheiros de jornada

Na vontade que eles tinham

De correr até Ti

De Te abraçar

De Te aliviar a dor

Que é sempre exponenciada pela distância.

 

Estranha semana esta, meu Deus!

Em que apenas a intimidade da partilha das memórias

do caminho percorrido em mútua companhia,

me permite estar com quem me habita

e não está perto

mas se faz perto.

 

Estranha semana esta, meu Deus!

Escolho confinar-me em Ti

e ofereço-Te a minha companhia.

Ajuda-me, Senhor!

a caminhar contigo,

a caminhar com os que me habitam,

a vivermos juntos esta semana, contigo, Senhor

e a chegar, contigo,

e em Ti,

á alegria pascal da Ressurreição.

20200403

202004031621

Não estou muito habituado ao não fazer. Normalmente leio bastante, vejo bastante, escuto bastante, e por vezes dou até a sensação que apenas leio, vejo e escuto. No entanto, naquilo que eu entendo como sendo importante, há um formigueiro que não me deixa ficar parado. Esse formigueiro já me meteu em trabalhos inúmeras vezes na minha vida mas foi justamente esse formigueiro que me deu também algumas das maiores alegrias. Digo muitas vezes que, naquilo que é verdadeiramente importante, fecho os olhos e salto, sem questionar em demasia as consequências. Quando corre mal, tenho tido a bênção de ter os que me amam por perto e me recuperam da queda; quando corre bem, tenho tido a bênção de ter os que amo por perto para partilhar a felicidade e a alegria.
Hoje de manhã acordei com um sentimento de impotência que não me é familiar. Leio, vejo e escuto imensas coisas e o que eu posso fazer, o que eu consigo fazer, é imensamente ineficaz, imensamente pouco, imensamente vão, e isso provoca-me um desconforto que me tira do sério. Sinto o formigueiro que normalmente me impele para a frente, mas não consegui ainda a melhor forma de o satisfazer sem que isso ponha em risco alguém.
Faço esquemas e rabiscos e consulto aqueles com quem trabalho, nesta rede de apoio mútuo e de mútua sensação de quase impotência, já que pouco mais conseguimos fazer que telefonar às pessoas, mostrar a nossa disponibilidade para ajudar. Como nos conhecemos bem, como enfrentamos juntos os desafios quotidianos daqueles que verdadeiramente precisam, intuo neles o mesmo formigueiro, a mesma sensação de impotência, a mesma vontade de arregaçar as mangas e fazer alguma coisa... e a mesma rendição à verdade destes dias, que é permanecer em casa, não para nos protegermos, mas para que todos possam ser protegidos.


20200402

202004021125

Adoro a presença dos meus. Dos filhos, dos amigos, dos companheiros de jornada, da família, de todos aqueles que me ajudam todos os dias nesta travessia que é a vida. Mas gosto muito, preciso muito, da distância. De estar sozinho, de caminhar sozinho, de pensar sozinho, da reserva, de sentir saudade.
A saudade é uma forma de amor, e sentir saudade é uma forma de sofrer por amor e, incurável romântico que sou, sofrer por amor não é uma má forma de sofrimento. Na verdade, apenas sinto saudade de quem me toca a alma, e esse é um poder que eu, por amor, concedo a alguns, e que permanece, imune ao tempo e à distância, Por isso eu gosto da saudade. Não raras vezes sorrio estúpida e aparentemente sozinho quando na verdade as memórias me enchem a alma de conversas, de caminhadas, de boas recordações. Claro que a saudade dói, e quando a distância nos é imposta e não voluntária, dói como o caraças. Claro que, se pudesse, meter-me-ia já no carro e iria ao encontro da minha gente, nem que fosse para rever o seu olhar por breves segundos. Porque a saudade, particularmente daqueles que acampam cá por dentro, tem destas paradoxalidades:não se obedece ao tempo e à distância nem na separação nem no reencontro: uns breves momentos com quem se ama fornece perene alimento ao amor.
Nestes tempos de confinamento, tenho saudade. Imensa saudade! Quero acreditar que possa ser sinal de uma vida cheia... de gente de quem vale a pena sentir saudade!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...