20140429


Contextualizando, para memória futura: os tios da minha mais-que-tudo estão velhos e não têm filhos. Como um tem Parkinson e outro tem Alzheimer e vivem a uma dezena de metros de minha casa, quem lhes dá apoio é a Isabel. Á medida que a doença foi avançando surgiu a necessidade de alguém dormir lá em casa deles, para o que fosse necessário. A minha filha mais velha prontificou-se logo a fazê-lo, o que é ótimo porque ela está em medicina e pode ser bem mais útil que qualquer um de nós.
Agora o que interessa: durante este fim de semana ela tirou as coisas dela de nossa casa e levou-as para a casa dos tios. São escassos metros, mas ainda hoje de manhã, quando passava no quarto dela e o vi vazio, senti um nó no estomago. Eu, que sempre disse que os filhos devem ganhar asas, que sempre lhes disse que logo que puderem devem ter o seu espaço, confirmo que não lido muito bem com a sua ausência. E não é fácil. Desde sempre que somos muitos lá em casa e aproxima-se a altura em que seremos menos. Daqui por dois anos dois dos meus filhos acabam a faculdade e outros se seguirão. E eu balanço: por um lado anseio por voltar a ter, finalmente, o meu espaço, as minhas coisas sem que ninguém lhes mexa, o silêncio e a serenidade de que tanto gosto; por outro lado, no entanto, a sensação do vazio que, inevitavelmente, se irá instalar. Terei - teremos! - que reaprender a viver com menos daquilo que verdadeiramente importa, ainda que vivamos com mais do que não é assim tão importante.
Mas vai ter que ser. Para bem deles e de nós próprios.   

20140428


Saio sempre a ganhar quando deixo que a vida me surpreenda. Quando não me encerro em mim mesmo, convencido que já vivi e senti o que de mais importante posso viver e sentir. Estes últimos dias, com a peregrinação a Fátima e tudo o que ela implicou de preparação e organização, com todas as dificuldades inerentes à caminhada, à falta de horas de sono, à comida fria e chão duro, deixaram-me um sabor a novo, ao qual devo agora juntar um olhar novo.
Peregrinar para Fátima não tem nada a ver com o peregrinar para Santiago. Olha-se para as pessoas, para o que levam vestido, para o que vão comendo nos carros de apoio, para a forma como andam, mancando quase todas, para os esgares dos seus rostos a cada passo e as lágrimas sofredoras da sua chegada, e percebemos que ir a Fátima a pé não é coisa de passeio mas de promessa. Não é coisa de gente mais ou menos bem, que vai a Santiago pelo puro prazer de ir (e nada contra, eu também o faço) mas de pessoas sofredoras que, num dos muitos momentos de aflição, não encontraram outro consolo que o colo da mãe.
Armado em chico esperto, eu contesto muitas vezes o sacrifício destas pessoas. Alego sempre que não é isto o que Deus quer, que não podemos trocar sofrimento por consolação, como quem troca arroz por dinheiro. Não é estas a lógica do Pai que nos ama e quer o melhor para nós. No entanto, basta-me estar junto de alguns destes sofredores para me calar e recolher-me no meu canto. Ainda agora na visita pascal, testemunhei mais uma vez as condições incríveis em que algumas pessoas vivem, bem perto de mim. E a minha filha, que desta vez foi comigo mas costuma ir noutra cruz, disse-me que a volta que ela dava tinha casos bem mais complicados. Em todas essas casas de sofredores tinha, invariavelmente, uma Senhora de Fátima. Como poderei eu, que nem sei o que é viver nessas condições, discutir o que é a esperança? Como poderei eu, com que arrogância, com que desfaçatez, aproximar-me de um pai que sofre pelo filho e chapar-lhe com a teologia na cara?
Peregrinar para Santiago é muito diferente de peregrinar para Fátima. Em caso de dúvida, olhe-se para o que os pés de uns e de outros calçam.
Lamento apenas que me esqueça disto demasiadas vezes. 

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...