Quelimane 2011



2011-08-16

Despedirmo-nos-emos hoje de Quelimane. Com chuva, como convém a qualquer despedida que valha realmente a pena. Como sempre, hoje estava às voltas na cama de manhã enquanto pensava em tudo o que se passou aqui e no que se teria passado lá em casa. Como sempre, faço um balanço despreocupado e pouco rigoroso. Valeu a pena? Será mesmo que valeu a pena? O sacrifício que impus aos meus, a distância, a saudade, o dinheiro gasto (600 euros em telemóvel é uma verdadeira loucura), a minha ausência junto daqueles a quem amo e a quem pertenço… Será que valeu mesmo a pena? Creio que a resposta será sempre condicionada. Não ao passado, claro, nem sequer ao presente. Mas ao futuro. Da Casa Appolonnie, principalmente. Será o seu futuro que me dirá se valeu ou não a pena ter vindo para este fim do mundo tentar fazer alguma coisa pelas pessoas daqui ou se não foi um mero capricho para encher o olho, a alma e o ego.
Levo comigo, naquela bagagem que não acusa excesso de peso no aeroporto, a maior experiência de viver em comunidade que alguma vez tive. Não falo em família, porque essa, tenho a minha, que está a um nível afectivo que não é comparável. Falo em amizade, falo em grupo, falo em fazermos tudo, absolutamente tudo juntos. Falo em confiança e entrega e respeito e espaço; falo em apoio, em cedência, em atenção ao outro, em disponibilidade; falo em pôr os talentos a render, timidamente uns, mais confiantemente outros; falo em cumplicidade, em planear e executar, em passar da fase do “isto não vai ser possível” ao “conseguimos o impossível”; falo de conversar e brincar e fazer palhaçadas e distrair o cansaço; falo de saudade, tremenda saudade, vivida e chorada em silêncio ou então partilhada num dos enormes momentos de oração que no final de cada dia, todos os dias, nos puxavam uns de encontro aos outros e juntos nos elevavam até ao Pai; falo daquilo que verdadeiramente levarei daqui, na bagagem pessoal: a entrega silenciosa e discreta da Nice, a pureza cristalina da Nonô, a cuidadosa disponibilidade do Tommy, a timidez e sensibilidade da Cata, a enorme maturidade da Piki, a coragem da descoberta da Pat, a espontaneidade e autenticidade da Gabi, a capacidade de luta da Maggie, a doçura desarmante e voltada para fora da Rita, a tremenda sensibilidade e instinto de protecção do Mário, a capacidade de superação da Sofia e a beleza absolutamente transbordante da Sara. Miúdos grandes, pessoas enormes, com quem tive o enorme privilégio de partilhar a vida, de aprender, de chorar quando choravam, de rir quando riam, de me entregar porque eles próprios se entregavam sem reservas. E falo, claro, da enorme disponibilidade da Carla, sempre atenta, sempre de sorriso vestido, mesmo quando não concordava com o que ia acontecendo; do silêncio prudente, por vezes ensurdecedor e sempre desafiante da Filipa, que tudo e todos ia dissecando, analisando, colocando uma semente aqui e outra ali, com critério e enorme discrição; do tigre de papelão que é o Paulo, diplomata por excelência, que animou quando era para animar, ralhou quando era para ralhar, e soube sempre assumir a humildade de servir os outros à revelia de si próprio.
Esta foi a melhor parte da minha Missão: o que se passava cá em casa, dentro destas paredes, longe do caos que se passa lá fora. Este foi, durante este mês, o nosso castelo, o nosso refúgio, o nosso porto seguro. Era aqui que voltávamos no final de cada dia, era aqui que brincávamos e nos tínhamos uns aos outros. Era aqui que vínhamos buscar as forças para enganar a saudade dos nossos, daqueles que são, verdadeiramente, a nossa vida.
Não tenho a certeza que terá valido a pena. Não tenho hoje, aqui e agora, a distância afectiva necessária para fazer esse tipo de avaliação. Se valeu a pena pelo que se passou aqui em casa, apenas pelo que se passou aqui em casa, então lamento, mas não valeu a pena. O que se passou nesta casa passar-se-ia numa outra casa qualquer mais perto da nossa própria casa. Porque o critério não podemos ser nós, porque não viemos para tão longe por nossa causa, o que terei de ponderar é se valeu a pena pelo que fizemos fora de portas, fora desta casa, fora deste castelo. Lá, onde a vida não se passa mas se conquista, se arranca à própria vida todos os dias. E aí temos que ser muito honestos e tentar perceber se conseguimos, realmente, mudar alguma coisa na vida daqueles a quem nos entregamos.
É cedo, ainda, para fazer esse tipo de avaliação. Porque depende, em grande parte, do futuro. Que a Deus pertence.

2011-08-14

Incrível como em Quelimane o tempo é a única coisa que mexe rápido. Incrível como fui capaz de passar uma semana inteira sem registar aqui o que quer que fosse. E quanto haveria para registar! Foi uma semana intensíssima: electricidade na Appolonnie, pinturas na Família e Esperança, ensino em todas elas, que também foi para isso que viemos até esta terra de fim do mundo. Mas não foi uma semana fácil. Nada fácil.  Muito menos quando partilhamos as 24 horas do dia num clima que nos desgasta, numa terra que nos consome, com pessoas que nos absorvem completamente. Palavra aqui, palavra ali, lá conseguimos levar a água ao nosso moinho. Outro dos responsáveis pela minha ausência aqui foi o excelente livro que li aqui. Acabei-o justamente ontem à noite, pelo que agora já pude aqui voltar. Há muito tempo não lia algo tão útil, tão sistematizador dos sentimentos e das formas de agir. Há muito tempo que não me dizia que tenho que comprar este livro várias vezes: lá para casa, para o CR…
Apesar de não ter sido fácil, esta foi, sem dúvida uma boa semana. Se calhar não tão intensa em termos afectivos – excepto ontem, quando nos despedimos da Casa Esperança e Appolonnie – mas de consolidação de trabalho. Fizemos coisas que quando nos foram propostas nos pareciam impossíveis de concretizar, como pintar a Casa Família e instalar a electricidade na Appolonnie, mas que ficaram todas no lugar. Segunda-feira, quando ficar definitivamente colocada e paga a grade de segurança, poderei finalmente respirar um pouco melhor: foram vários os riscos que corremos ao colocar dinheiro nas mãos dos fornecedores sem qualquer garantia, mas, em parte graças à atenção que sempre tivemos, tudo correu pelo melhor.
De todas as casas, é a Appolonnie que levo comigo. Passei lá a maior parte do tempo desta missão e foi lá que investi as minhas forças e o meu engenho. Saio razoavelmente satisfeito se atender às condições em que aqui estive: pouco tempo, algum dinheiro e quase nenhum futuro. Saio, contudo, com um enorme sabor a pouco. Não posso nem quero nem tenho vida para acompanhar as coisas mais de perto, por isso também o não posso exigir a ninguém. Mas a sensação com que os deixo é a de que bastariam 6 meses aqui com alguém com cabeça e algum dinheiro e a vida daqueles miúdos alterar-se ia para sempre. E para melhor! É muito esquisito para nós, que estamos habituados a ver no dinheiro a medida principal de todas as possibilidades, depararmo-nos com uma situação em que se calhar o dinheiro é o mais fácil de conseguir. E depois? O que se faz com esse dinheiro? Como se gasta? Com que garantias? Será bem aplicado? Por quem? Com que custo? Estranho, muito estranho, vivermos uma situação na qual o mais difícil de conseguir são justamente as pessoas de confiança. Estranho para mim, que confio logo à partida, que todos são inocentes até prova em contrário, mas também estranho para todos nós, que sentimos que aqui é tão fácil fazermos alguma coisa mas apenas porque todos fazem coisa nenhuma.
O que se passou na Casa Esperança é o paradigma disto: tinham a capacidade para comprar as tintas, tinham as pessoas, mas não tinham ninguém em quem confiassem. E assim, num país onde ninguém confia em ninguém, onde todos se olham de soslaio quando é necessário um qualquer compromisso, tudo fica por fazer: as estradas por arranjar, o lixo por apanhar, o outro para cuidar. Até por causa disto, deste clima do adia sempre que puderes, Quelimane foi uma verdadeira lição para mim. Eu, que tudo adio, que tudo deixa para as calendas, que até gosto de alguma desordem que nos impeça de nos sentirmos meras ferramentas em mão alheias, apanhei um verdadeiro choque ao verificar o estado em que as coisas chegam quando não há organização. Espero que me sirva de alguma coisa. 

2011-08-08

Foi um excelente fim-de-semana. A partida engendrada pelo Paulo e pelas Psis – eu nestas coisas apenas me deixo levar (estou mesmo a ficar velhote!) – de os acordar às 6 da manhã para irmos para a Lagoa Azul quando lhes tínhamos dito que poderiam dormir até às 10 e que iríamos para o Seminário, resultou em pleno. As caras deles eram impagáveis! Quando chegamos à Lagoa Azul deparamo-nos com um cenário absolutamente paradisíaco: um lago lindíssimo, uma paisagem deslumbrante e um silêncio… Passamos lá um dia a descansar e a fazer coisa nenhuma, que era justamente o que precisávamos depois da semana que tivemos.
Mas as coisas não ficaram por aí. Tínhamos comprado capulanas para todos e fizéramos uns convites especiais por quarto para um jantar confeccionado pela Creche (nós) seguido de um espectáculo elaborado pelos miúdos. Era condição essencial vir à Quelimaníaco: capulana, trança, pinturas… Foi absolutamente fenomenal. A imaginação deles e delas na decoração dos corpos, o comermos com as mãos, os espectáculos hilariantes que se seguiram fizeram da nossa noite de sábado completamente memorável, daquelas que daqui por vinte anos contamos aos amigos cheios de orgulho e saudade!
Ontem foi dia de limpezas, de Mephazé e de descanso. Depois da missinha voltamos para casa, pusemos a casa num brinquinho – que bem precisava! – e depois de almoçarmos foi descanso geral. Depois da pedra que o Mephazé sempre me provoca ainda vi um filme com os miúdos e depois a Creche teve uma reunião com as Irmãs para assentarmos mais uns alicerces na Casa Appolonnie. Foi muito boa, a reunião. O PC tem-se esmerado no seu papel de diplomata e com isso a sensação com que ficamos é que esta missão tem recuperado muita da confiança que se perdera algures. A ponto de, no final da reunião, as irmãs nos convidarem para um jantar de sábado com as meninas em sua casa.
Foi um excelente fim-de-semana, tal como se pode aferir em ambas as orações de sábado e domingo: orações descontraídas, alegres, onde se celebrou, fundamentalmente, a alegria de estarmos aqui, juntos, e podermos celebrar e agradecer o nosso trabalho. E isso foi muito bom. Tanto para mim como para o PC os fins de semana são particularmente difíceis e neste conseguimos dar a volta por cima. Hoje é dia de trabalho, começa uma semana dura onde temos que acabar aquilo que começamos para que nada fique pela metade. Esperam-nos uns tempos duros de muito trabalho e já de alguma saudade. Mas estamos prontos. Vamos a eles.

2011-08-05

Hoje, foi, efectivamente, um dia diferente dos outros. Porque senti, pela primeira vez, que tínhamos obtido um qualquer resultado positivo no meio desta desgraçada gente de tão abençoada terra. O estar aqui, agora, nesta casa que, não sendo minha, já permite que lhe  reconheça os cantos, e saber que na Appolonnie hoje vão dormir em camas com colchões e no fim-de-semana vão poder saborear algo mais que peixinhos mal amanhados, dá-me uma certa paz. Efémera, eu sei, mas ainda assim, alguma paz. Hoje, pelo menos hoje, fizemos alguém feliz. Em quantos dias da minha vida posso afirmar isto sem me envergonhar da resposta? Em quantos dias da minha vida consegui dar aos outros mais que meras palavras? Em quantos dias da minha vida senti, verdadeiramente,  que eu posso afinal ser as mãos daquele que conta com as minhas mãos? Em quantos dias da minha vida eu me deixei comover pela alegria contagiante e absolutamente cristalina de quem recebe aquilo que para mim é garantido? Em quantos dias da minha vida eu posso afirmar que a minha felicidade mora, efectivamente, na felicidade de quem tenho diante de mim?
Hoje foi, efectivamente, um dia diferente dos outros.
Já não era sem tempo.
Deus seja louvado!

2011-08-03

Hoje foi um dia absolutamente fail, como diz o pessoal cá da casa. De manhã não consegui ir à Casa Appolonnie, o que não me convinha nada. Preciso de avançar com as coisas com o Teófilo e a chuva de ontem apenas complicou as coisas: ontem não pude ir e hoje não conseguia chegar. A água era tanta que dava pelo joelho, pelo que lá tive que ir para a Casa Esperança. E pintar, ainda por cima, que é uma coisa que não gosto de fazer. Mas lá pegamos nos rolos e pintamos uma das enésimas paredes que a Irmã Idalina, no seu jeito desenrascado, nos destinou. À hora do almoço era clara alguma tensão do Paulo: ele sabe que não temos qualquer possibilidade – nem vontade – de satisfazer os desejos dela mas é complicado para ele combater as suas pretensões de forma diplomática. E depois fica tenso, entalado entre o que sabe que deve ser e o que tem que dizer. Eu entendo, passa-se um pouco isso com todos nós, que todos os dias somos abordados no sentido de dar isto ou aquilo, de prestar este ou aquele serviço. Já o sentimos mais que uma vez na Casa Família, com o Irmão António a querer que façamos isto e aquilo, mesmo ao fim-de-semana, e até na Casa Appolonnie, com as permanentes solicitações e necessidades absolutamente prementes.
Na nossa oração de ontem, que era sobre cores, escolhi o branco e a palavra “racismo”. Nunca como até aqui eu senti tanto a cor da pele. Quando fui ao hospital com o Miguel foi impressionante: passamos à frente de todos e nem sequer tivemos oportunidade de contestar. Quando andamos na rua, seja a que hora for, seja em que local for, ora somos olhados de soslaio ora vêm em nós o porquinho mealheiro. É absolutamente impressionante como estas coisas se notam cá por estas bandas!

2011-08-02

Chove a cântaros. As ruas devem estar num lamaçal impressionante e não devemos sair de casa. Pelo menos não de manhã. Já ontem choveu bastante e de manhã tivemos alguns casos de frio e tosse, pelo que não convém nada arriscar. E não arriscaremos.
Foi um bom dia, o de ontem. E foi geral. Quando vínhamos para casa conversava com alguns e todos diziam que tinha sido um bom reinicio. E sentíamos todos – sem o confessar – que tínhamos algum receio deste dia: a semana passada foi dura e era importante que começássemos bem. No final do dia estávamos todos bem dispostos e contentes com o que fizéramos e isso é muito importante para o bem-estar geral. E reflecte-se muito nas orações, por exemplo. A de ontem – que foi organizada pelo meu grupo – foi levezinha e bem disposta, e isso apenas foi possível porque estávamos todos bem.
Como estava previsto, fui para a Casa Família. E gostei. Estive apenas com o Chissano e tive o trabalho facilitado por causa disso. Também ontem estava lá menos gente porque a escola já começou e para além disso creio que depois de uma semana onde as meninas causam um natural impacto e fascínio nos rapazes eles acabam por perceber que é necessário separar águas e e escolhem outras coisas para fazer. As solicitações e que vão sendo mais que muitas. O Paulo ainda ontem ao almoço estava verdadeiramente chateado porque na Casa Esperança pediram-nos para pintarmos a casa toda e nós não somos trolhas. Também o Ir. António pediu para irmos ao sábado ao seminário ensinar novos cânticos aos seminaristas. Todos os dias temos alguém a pedir alguma coisa à porta e o Joaquim também não nos larga a pedir para resolvermos o assunto dele, que em boa verdade nem percebemos muito bem qual é. Esta gente vive na miséria e muitas vezes não tem mesmo outra possibilidade senão pedir. Quando ando na rua tenho reparado na imensa quantidade de t-shirts que não são de cá e não podem ter chegado aqui senão pelos missionários como nós que deixam tudo quando partem.
Ainda ontem dizia à Belita que estávamos rodeados de miséria por todo o o lado. É impressionante! As condições de vida aqui são terríveis. A nossa casa, que é uma boa casa para os padrões moçambicanos é pior que qualquer casa do Bairro de Ramalde: degraus partidos, retoques apressados, móveis velhinhos… Mas é uma boa casa, com uma boa estrutura, mas o problema aqui – como em todo o Moçambique, aliás – é a falta de manutenção. Ainda ontem a Ir. Dizia que os contentores estão voltados para baixo porque os camiões do lixo estão avariados e não há forma de pegar naqueles contentores cheios. As condições sanitárias e a higiene são, para mim, dos maiores e mais chocantes problemas de Moçambique. É impressionante a profusão de cheiros de corpos e de lixo misturado com caril com que todos os dias somos inundados. E o lixo espalhado na rua, na beira dos caminhos, junto aos poços de água, é uma constante por aqui. É incrível como seria fácil, com um pouco de organização, colmatar este facto. É incrível como não se faz nada e s deixa que ratos e homens vivam lado a lado pacificamente.
Lamento mas África não tem nada a ver comigo. Já tive a minha dose de lixo e de miséria e não sinto necessidade nenhuma de voltar para lá. África vale a pena é pelas pessoas e pela quantidade de solicitações que nos interpelam: há tanta coisa para fazer, tanta coisa simples que lá em Portugal passa completamente despercebida, que é muito fácil sentirmo-nos úteis aqui. E isso faz muito bem ao nosso ego.

2011-08-01

Foi um bom fim-de-semana. A decisão de irmos até Zalala no sábado foi muito importante para o grupo. Chegamos a sexta-feira rebentados e começavam já a aparecer pequenas picardias no seio dos miúdos. Nada mais natural, até porque alguns deles não estão habituados nem às lides da casa nem sequer a viver com outras pessoas no mesmo espaço. Em Zalala deu para estarmos apenas juntos, sem qualquer outra preocupação que não fosse a de simplesmente desfrutar a paisagem e o mar. Apesar de todos contarmos com outra coisa – creio quem definitivamente, temos que ter alguma calma com as expectativas que criamos acerca de Moçambique – foi um dia muito bem passado, até porque conseguimos almoçar num sitio que, para os padrões de Moçambique, era excelente. Ao fim do dia a coisa complicou-se um bocado porque a Patrícia teve uma recaída. Mas estávamos preparados e conseguimos que as coisas não escapassem ao nosso controlo.
No Domingo foi dia de Eucaristia, descanso e reunião. Por esta ordem. E foi um bom dia. Deu para retemperarmos forças, para conversarmos olhos nos olhos e afinarmos estratégias de vida comum, e a oração foi um bom lançamento para esta semana que hoje começa. No final do dia de ontem a sensação que tinha é que o grupo tinha voltado ao seu normal: remamos todos para o mesmo lado, subimos mais um degrau no capítulo da confiança e estamos prontos para as lides. Decidimos que eu e as Psis trocaríamos de casas: elas passariam a ir à Applonnie e eu ficarei mais pela Casa Família. Apesar de não ser o mais cómodo para mim – gosto muito da Appolonnie – é certamente o melhor. Desta forma conseguimos todos acompanhar o que vai acontecendo em cada uma das casas de uma forma mais próxima das pessoas e mais desapaixonada, mais próxima da realidade. Isso é muito importante que aconteça, nomeadamente na Casa Appolonnie, que irá exigir uma acção posterior à nossa partida. Quanto mais olhos a analisarem melhores respostas e estratégias encontraremos. Por outro lado, irá ser bom eu ir à Casa Família. Creio que as expectativas vinham demasiado altas relativamente a esta Casa, que é tudo menos fácil. Os rapazes que lá se encontram são naturalmente ariscos e alguns deles estão lá exclusivamente pelas meninas. A sensação que tenho é que o Ir. António lavou as mãos daquela casa ao delegar tudo no Rogério e agora aquilo é um pequeno feudo onde tudo é controlado com mão de ferro e, sobretudo, na base do privilégio do chefe. Talvez esta semana passada lá altere esta impressão que eu tenho. Vamos ver: olhos abertos e ouvidos atentos.

2011-07-29

Sinto-me como uma formiguinha, que vai fazendo o seu trabalho pequenino, pequenino, e jamais consegue ter uma visão do global, do que já foi feito e do que faltará fazer. Acabo de chegar da casa da Dª Lígia, uma portuguesa de cerca de 70 que já cá vive há 46 e que tem apoiado de alguma forma a Casa Appolonnie. Tenho andado esta semana toda a recolher dados, a falar com este e com aquele, a ver com profundidade, a tentar discernir o que é real do fictício para descobrir uma forma de chegar a uma solução para aqueles rapazes. Creio que o choque inicial, que me afectou profundamente nos dois primeiros dias, começa agora a ficar um pouco atenuado. E isso é bom… desde que não me deixe de comover. Mas é justamente isso que tenho feito, tenho-me mexido para conhecer as pessoas, as várias visões da questão e as várias abordagens possíveis do problema. Com isso não tenho estado assim tanto tempo com os meninos, a explicar-lhes, e por isso tenho que tentar hoje, ao jantar, pedir-lhes desculpa, porque eles é que dão o corpo ao manifesto.
Foi bom falar com a Dº Lígia mas foi melhor estabelecer contacto com ela. O Teófilo foi connosco pelo que não estava muito à vontade para conversar com ela, mas no Domingo, depois da Eucaristia da Catedral, vou tentar conversar com ela mais em profundidade, escutar o que ela pensa, que ela conhece o terreno melhor do que eu.
Agora é tempo, fundamentalmente, de balanço e descanso. Amanhã iremos até Zalala, que os efeitos do cansaço já se começam a notar, ainda que de forma discreta. Há já alguns resmungos, leves, que são prontamente colmatados por todos nós mas que são sinais que exigem atenção. Sinto que aos poucos vou ficando mais racional e menos emotivo, o que não é mau. Temos uma responsabilidade acrescida em cima dos ombros e temos que estar atentos para o que se passa à nossa volta, Vamo-nos apercebendo que não é fácil ajudar esta gente, que há também pessoas menos boas e que viver na miséria tem custos, como não poderia deixar de ser. Por isso gosto tanto da Casa Appolonnie: é que, apesar da miséria, não encontro muitas recriminações ou tentativas de aproveitamento. Encontro algumas, poucas, quase em surdina, mas outra coisa não seria de esperar para quem acha que a resolução dos seus problemas está ali, junto deles, à mão de semear. Não falo com eles acerca disso e tento apenas brincar e estudar, dar-me bem, fazê-los sentir que gosto deles e que são importantes para mim. Se o consigo fazer… não sei.

2011-07-28

Confessava hoje, depois de sair, que não consigo desligar da Casa Appolonnie quando de lá saio. Não consigo e, em boa verdade, nem sequer tenho a certeza de o querer conseguir. O desafio de nos deixarmos comover com os outros foi aceite logo à partida quando quis vir para cá. Como diz a Catarina, se fosse para passar ao de leve nas coisas teria certamente ficado em cãs, rodeado por todos aqueles a quem mais amo, comodamente instalado no sofá. Não foi isso, contudo, que escolhi. Não foi para isso, certamente, que fiz milhares de quilómetros até esta terra do Nunca. Mas também não precisava de tanto. Bastar-me-ia para saciar o ego uma qualquer Casa Esperança onde há dificuldades, sim senhora, como em todo o Moçambique, mas que é um oásis de organização, que é a principal lacuna deste país. A questão, a verdadeira questão, é que sinto que o Colégio do Rosário, neste caso por meu intermédio, é quase a última esperança de um conjunto de miúdos que são já rapazes, que não se contentam mais em pedir para conseguirem o que procuram. Não são mai pequeninos e girinhos, são jovens adultos, bem constituídos, que não têm onde cair mortos e que sofrem todos os dias por causa disso. São rapazes respeitadores, de uma humildade que quase magoa de tão deslocada face à miséria onde vivem. Não reivindicam nada, absolutamente nada, agradecem tudo e pedem, pedem, pedem. Atenção, carinho, solução para o desespero onde se encontram, querem ser alguém. Nunca me tinha deparado com este nível de miséria. Com a vergonha de ir para a escola esfarrapados e descalços onde são alvo da chacota de todos, a vergonha de pedir, de estarem dependentes de quem não lhes liga absolutamente nenhuma. Tenho que dar a volta a isto. Nem que seja para calar a minha consciência.

2011-07-27

Coisa esquisita, esta, que me acontece sempre que as emoções são mais fortes que o costume. As palavras não me saem, tudo me soa a banalidade, a música pimba daquela barata e detestável. São já incontáveis as vezes em que peguei no computador para escrever qualquer coisa do que se tem passado aqui em Moçambique e acabo sempre por o fechar sem registar nada. Não é novidade para mim. Acontece sempre que transbordo, como se não conseguisse lidar com emoções fortes. Tento sempre racionalizar, estabelecer uma ligação directa entre o coração e a cabeça, de forma a sistematizar o que vai cá por dentro, a organizar as ideias e, sobretudo, os sentimentos. Ainda não o consegui. Não como queria. Ontem, por exemplo, não conseguia deixar de me sentir zangado: comigo próprio, com o mundo, com Quelimane, com Moçambique, até com Deus, que não tem culpa nenhuma. Mas quem não tem culpa mesmo são aqueles meninos da Casa Appolonnie e são eles quem acorda todos os dias num mundo cheio de certezas de coisa nenhuma. Eles é que não têm culpa. Nem sentem culpa. Vão vivendo dia a dia, momento a momento, sorriso a sorriso, como se encontrassem na sua miséria o segredo para ser feliz que escapa a tantos de nós. Estava mesmo zangado, ontem. Como não me lembro de ter estado ultimamente. Só me lembrava de Gandhi ou da Madre Teresa ou tantos outros que, quando confrontados com estas situações, decidem assumi-las como suas e não se escondem atrás de justificações. É impossível para mim ficar impávido e sereno quando sei que eles não jantaram. É impossível sentir a comida a passar sem que pense neles a olhar para as paredes cheias de nada. É impossível sair daquela casa e fechar, desligar, fazer de conta que nunca aconteceu: que nunca estive em Moçambique, nunca conheci a Casa Apolónia, nunca conheci o Miguel, ou o Chinho ou outros ainda sem nome para mim mas com olhos, que me olham, que me interpelam e que, ainda que não o façam, me acusam. Gostava de conseguir fintar o meu próprio destino e conseguir ser mesmo o salvador da pátria, aquele que altera as vidas dos que sofrem, aquele que consegue fazer sonhar e roubar motivos para se dizer “por vezes sentimos que estamos para aqui num canto e ninguém nos liga.”
Hoje, com a Graça de Deus, as coisas alteraram-se um pouco. Pelo menos os meninos já comeram, o Miguel já foi ao hospital e eu já consegui acalmar um pouco a minha consciência. Não resolvi nada, claro. Limitei-me a dar uma aspirina para aliviar um pouco a dor de cabeça sabendo que não está aí, ainda, cura nenhuma. Mas pelo menos sinto que ganhei algum tempo e que o tempo, que aqui corre devagar, não é menos tempo que o tempo no meu mundo. Importa agora pensar com seriedade e pés assentes nesta terra escura como as caras daqueles com quem nos cruzamos todos os dias. Importa encontrar soluções que sejam soluções e apenas serão soluções se o forem efectivamente para aqueles que delas precisam como de pão para a boca. Não valem aqui gestos bonitos e melhores intenções. Não valem. Nada. Absolutamente nada. Enquanto não se conseguir uma forma de saciar a fome daqueles meninos, tudo o resto é história para acalmar as nossas consciências. Tudo o resto é demagogia e história para entreter meninos. Se tivermos que encher os bolsos a alguém para que os meninos comam, seja. Antes isso que eles não terem futuro. Afinal, desperdiçamos tanto com coisas que valem tão pouco que bastaria um pequenino esforço e as coisas melhorariam certamente. E eu hei-de conseguir que melhorem. Tenho que conseguir. Sob pena de não mais encontrar descanso.

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