20210819


 

Há imensa irracionalidade nestes temos que vivemos. Venho à net e, no mesmo minuto, deparo-me com o sol e a escuridão total e absoluta. Por um lado, as imensas fotos de praias e férias e alegria e dolce fare niente; e no separador à direita relatos de uma dor e crueldade incomensuráveis, inimagináveis para quem nunca soube o que é viver em estado de guerra. Num minuto, preocupo-me com as coisas comezinhas, insignificantes, risíveis, do meu quotidiano - para mais em férias - e, nesse mesmo minuto, desvio os sentidos do terror que entra por mim dentro através das redes sociais e dos canais de comunicação. Entre um lugar e outro habito eu. Habitamos nós. Nas nossas conversas no jantar de ontem alterávamos de tema e de expressão facial consoante o tema e de estado de espírito dependendo do que discutíamos. Ao riso solto e franco sucedia a apreensão dura e calada. E falamos disso. Como é possível vivermos assim? 

Como é possível?

É possível. Tem que ser possível.

Este não é, aliás, um exclusivo nem destes tempos nem da guerra nem da vida moderna. Esta foi sempre a nossa forma de ser. Testemunhar a dor, condoer-se, e avançar apesar da dor. E não é egoísmo,  é instinto de sobrevivência, é necessidade de cuidar daqueles que cuidamos, é a necessidade premente de não nos deixarmos tolher pelo medo, agravando as consequências do nosso sentimento de impotência. 

Recordo muitas vezes o Ir. António, de Quelimane. Quando lá chegamos e perguntamos o que queria que fizéssemos na sua casa de acolhimento, ele respondeu. "Brinquem. E riam. Os meninos precisam disso, que brinquem e riam com eles. Quando a minha família me vem visitar eles chegam junto dos meninos e choram perante a miséria que vêem. E eu ralho-lhes. Vai chorar para a tua terra. Aqui eles têm choro que chegue."

Há uma parte racional em mim que me diz que é assim que tem que ser. E depois há a parte visceral em mim, que me remói as entranhas e que tem que me impelir a fazer alguma coisa. E, por isso, a ter que iludir a impotência da ação lá longe com a ação com todos e em todos os que me rodeiam. Para que o acontece lá não aconteça cá. É pouco. Imensamente pouco que, sendo uma expressão que se contradiz, espelha bem a contradição e a impotência que por vezes me habita.

20210818



The Long Road by Passenger
https://www.youtube.com/watch?v=Pne7xGPaokA

You've walked the long road and you've worn it well
You stitched yourself up when you fell
Keep your memories in jars
Carry secrets in scars
Beneath your shell
You've seen some good days, and some bad ones too
You weave through fashion and trend
You've seen a sun rise on an ocean blue
You've seen it set for the dearest of friends

You found faith but you, chose to doubt it
You found love but you, left without it
And now you don't want, to talk about it

You travelled down through foreign lands
Touched mountain tops and golden sand
Seen pyramids and temples made of stone
Keep seashells in a cashmere scarf
A treasured book of photographs 
In every single one you stand alone
You've seen Vienna and the Berlin wall
As you watched the decades fall
The letters that you wrote never made it home
Your birthdays flew past like June
With Christmas days in hotel rooms
And new years eve with people you don't know

You built friendships but they, sailed without you
You never meant it and that's why, they doubt you
They don't ever talk about you

You're older than you used to be
The mirror weaves a tapestry 
Of lines that dance and shimmer 'round your eyes
You stare back at a man, forever holding out his hand
As if the answer's going to fall out of the sky
But the penny never dropped
And no man has ever stopped time flying by

Não tenho o hábito de estar atento às letras das músicas. Mesmo das portuguesas. A música age como um todo em mim, e pode ser bela ou horrível qualquer que seja a sua nacionalidade justamente porque funciona como um todo. E normalmente a música é pretexto e companhia de caminho, não me detém mas impulsiona-me a viajar dentro, apenas por causa da sua sonoridade. Mas estou de férias e uma das bênçãos das férias é o tempo de que disponho para fazer o que habitualmente não faço. E hoje deu-me para estar mais atento à letra desta canção do Passenger - somos todos caminheiros e passageiros ao mesmo tempo - que me transmitiu uma enorme melancolia.
Sempre tive medo do vazio. Particularmente do vazio que, eventualmente, corremos o risco de deixar como testamento. O não deixar boas memórias - ou memórias nenhumas, sequer - o passar ao esquecimento, o não ter sido suficientemente relevante na vida de ninguém para que mereça ser recordado nas conversas, nos risos, nas lágrimas. O viver por viver, apenas, sem ganhar ou deixar marcas, o anonimato puro e duro - quem??? não me lembro! - sempre me assustou imenso. 

"Gostaria de fazer o discurso da tua despedida". Disse-mo com a naturalidade de quem sabe que eu sei que falava verdade, com a mesmíssima naturalidade de quem habita a mesma terra, a mesma realidade não palpável que ambos sabemos que habitamos, aquela inominável, indefinível, mas tão real como a que temos todos os dias diante do olhar. Sorri. Como não? Afinal, parece que, ao contrário da canção, zarparemos juntos. Ainda que não no mesmo barco.

20210816


"Estás mudado. Antes não pensavas assim, tão livremente. Nem concedias essa liberdade de pensamento aos outros." Não foi bem com estas palavras mas, atendendo ao contexto da discussão - as diferentes formas de viver a fé - era esta a intenção. Noutros tempos tivéramos auditivos e desbragados debates durante os quais eu era, invariavelmente, acusado de ter palas nos olhos e de não saber ver as coisas como as coisas são. Eu sentia-me ofendido com tamanha acusação, tão injusta e tão cega... e, pelo menos por vezes, tão verdadeira. A verdade é que fui aprendendo. Vou aprendendo. Muito por causa dos meus filhos, de ter que aprender com as suas - mais que legítimas, incentivadas - escolhas.
O problema dos ideais é que facilmente me esqueço que eles habitam o mundo das ideias. São metas, são objetivos, são horizontes, mas raramente são o chão que tenho sob os meus pés. Esse é sempre mais duro, mais cinzento, menos claro, com nuances que me provocam mais dúvidas que certezas. Normalmente, quando conheço a situação concreta, a dor concreta, a alegria concreta, as motivações concretas que fazem parte da história concreta de cada pessoa que comigo se cruza, a realidade recorda-me - muitas vezes com uma chapada na cara - como preciso de acordar para a vida.
Claro que eu preciso de ideais, de metas, de horizontes que despertam caminhos e vontade de os calcorrear. Claro que preciso de clareza, de saber por onde ir, quem seguir, de conhecer o bem e o bom e o belo para os poder escolher. Não me posso é esquecer que esse é o meu caminho, que o posso e devo testemunhar  - idealmente sem ser necessário dizer coisa nenhuma - mas que é apenas o meu caminho, tão certo e tão duvidoso quando o de alguém, ainda que esse alguém seja entranha das minhas entranhas, anda que esse alguém se desloque em sentido contrário.
O curioso disto tudo é que, à medida que envelheço me sinto genuinamente mais livre, não porque tenha mais certezas mas, pelo contrário, porque abraço melhor a incerteza e a dúvida como forma de caminhar. Na realidade, à medida que constato que as minhas certezas vão sendo cada vez menos, embora porventura mais enraizadas - a família, a fé, o serviço e a amizade como grandes pontos cardeais sobre os quais assenta a minha felicidade e a dos que me rodeiam - o espaço que concedo para o acolhimento das certezas e das dúvidas dos outros abrem caminhos. E presenças cá por dentro.

 

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...