20200727

202007270922

A vida é o que é e vou percebendo que, apesar das minhas fantasias, saber ler as circunstâncias permite-me traçar rumos e calcorrear melhores caminhos. Ontem foi dia dos avós e não pensei nos meus mas nos dos meus filhos. Quanto aos meus, não há muito a dizer. A Teta tem o património exclusivo da ternura dos avós na minha vida, e mesmo nesse caso, foi porque, por minha iniciativa, nos aproximamos no final da sua vida. Fora isso, não haveria muito a dizer. Não tenho memória alguma do avô materno, tenho uma memória muitíssimo ténue do meu avô paterno e a que tenho da avó paterna é tudo menos agradável... apesar de ser minha madrinha. Houve alturas - muitas! - em que o meu maior desejo era ter avós e pais normais, como os dos meus amigos, como via nos filmes, como lia nos livros. Não era isso que acontecia, nunca foi, a não ser quando tivemos a nossa própria família, que pudemos construir e educar segundo aquilo que entendemos como o melhor. E foi, durante muito tempo, uma mágoa. Que se acentua invariavelmente nos dias especiais. Nestes dias - do pai, da mãe, dos avós - à medida que vou vendo as partilhas na redes sociais, que vou vendo e lendo as reportagens que proliferam na comunicação social, acabo sempre a concluir que o defeito é meu. Que devo ter uma hipersensibilidade qualquer que me impediu sempre de os ver como devem ser vistos, que, nisto como em muitas outras coisas, há uma certa baralhação entre o real e o imaginário que me habita. Á medida que o tempo passa por mim vou assentando os pés na terra e vou-me esforçando por valorizar o que tive - e terei não por muito tempo. Faço uma releitura dos acontecimentos mais marcantes e tento fazer incidir sobre eles uma outra luz, que me permita ver o que até então permaneceu escondido. Nem sempre o consigo. Nem sempre permito que a mágoa dê lugar a boas memórias. Provavelmente porque nem sempre as consigo descortinar por entre os acontecimentos, ou a memória que tenho deles. No entanto, é um exercício importante. Porque mesmo quando a mágoa permanece, incorporo-a, dou-lhe as boas vindas, torno-a parte de mim. Porque a mágoa, particularmente no que diz respeito à família que era antes da minha, faz parte de mim. E eu tenho que viver com ela. O melhor que sei.

20200723

202007230845

Ultimamente tenho tido exemplos e conversas acerca desses exemplos de pessoas que têm tido atitudes diversas quando chegam ao fim da linha profissional. Umas, pacificadas, preparam e aceitam esse momento com tremenda tranquilidade, transpirando paz de espírito. Outros ficam angustiados, arrastando-se pelos corredores lembrando-me os zombies, que apesar de caírem aos pedaços, ainda se mantém em pé contra tudo e contra todos.
Sempre tive o meu pai como um destes: trabalhou desde menino, primeiro nos campos de Mouriz e depois nas muitas atividades que foi desempenhando ao longo dos anos. Reformou-se aos 65 anos mas apenas no ano passos, com 7e anos, deixou de trabalhar. Para se dedicar a minha mãe. Nos primeiros meses correu espantosamente bem, mas recentemente tive ecos de que estaria com alguns sintomas de depressão.Que não me surpreendem. Cuidar da minha mãe, apesar de ser um trabalho de quase 24 horas, é pouco para quem toda a vida saía de manha e regressava à noite. Vamos ter que conversar acerca disto. Não sei como, ainda, porque as nossas conversas sérias implicam sempre alguma dor e bastante desconforto, mas terá que acontecer.
É curioso como à medida que o tempo passa vou ficando mais atento a essa altura da vida. Espero sinceramente ir-me preparando para que, chegado o momento, possa ser daqueles que transpiram serenidade. Um bom amigo, daqueles a quem dedico uma atenção especial para poder calcorrear os seus caminhos, dizia-me esta semana que, quando se está de bem com a vida e rodeado das pessoas certas, tudo é mais fácil. E isso enche-me de esperança: sempre tive a bênção de ter na minha vida as pessoas certas e, agora, vou-me sentindo cada vez mais de paz com a vida. Gosto de pensar que poderei estar no caminho certo.

20200722

202007221509

Tentar descobrir Jesus nos outros, a cada momento, é um exercício que tem tanto de belo como de difícil. É certo que logo que consciencializo a intenção de o fazer já percorri mais de meio caminho: altera-se a atenção, o cuidado, e o propósito fica mais perto do alcance. Mas continua longe de me ser natural. E fácil. Uma parte importante dos meus dias e do meu trabalho é servir as pessoas. Servir mesmo, porque nenhuma delas paga e a nenhuma delas é mais pedido que a presença e, uma vez presente, que saiba estar. Volta e meia, quando corre bem lá vem uma palavra de gratidão ou reconhecimento, o que, não sendo o nosso propósito, serve também de alento. Mas na outra meia volta lidamos também com pessoas que , sendo-lhes dado tudo, acham-se ainda no direito de cobrar, de exigir, de se queixarem. E é com estas e nestas que é mais difícil descortinar Jesus, que se deve entreter a brincar às escondidinhas algures dentro delas. A estas apetece logo responder curto e grosso - uma linguagem que é a sua e que entendem muito bem - mas contenho-me, procuro-O, e tento, ainda assim, enveredar pela docilidade e atenção. Não é fácil, nunca é, mas ainda assim parece-me ser o caminho a seguir. Ou a tentar, pelo menos.

20200717

202007171210



Levei muitos anos, travei muitas inglórias batalhas contra imaginários moínhos, para perceber a minha forma de ser inteiro. Pensava eu que para ser inteiro deveria ser granítico, monobloco, sem rachadelas ou quebras, um pedaço que, pelo menos à vista desarmada, se apresentasse perfeito, incólume, sem falhas. E cada falha era tida por mim como um atentado a essa pretensão, como um desastre, como algo que deveria ser removido, o que normalmente significava ter que ser escondido do olhar, meu e dos outros. Tarde, mais ainda muito a tempo, o Meus fizeram-me perceber a minha idiotice. Que todos viam as minhas falhas, sabiam delas, e que, embora não gostassem particularmente delas, disseram que me amavam com elas, apesar delas, já que essas falhas são também o que eu sou.
O curioso é que eu sempre gostei mais do antigo que do moderno. Sempre gostei das casas que apresentam marcas de uso, falhas e fendas, que interpreto sempre como marcas de vida. Gosto imenso das páginas amarelecidas dos livros antigos, dobradas, sarrabiscadas, patentes do espanto, da curiosidade e dos ensinamentos que proporcionaram a alguém antes de mim. Aprecio jarras e pratos daqueles do campo, que se põem na parede e onde a água é ainda mais fresca. O novo e o perfeito, portanto, para mim nunca ganharam aos efeitos do tempo, à história, ao uso que as coisas e a vida devem ter. Tal como diz o Padre Almiro, "mais vale uma vida gasta que uma vida enferrujada". E tudo isto sempre foi mais importante para mim. Exceto quando eu era o alvo da minha atenção.
Agora vou lidando um pouco melhor com as minhas falhas. Já não as escondo, já as assumo perante os outros, já percebo que nem todos gostam e têm direito a não gostar sem por em causa o seu e o meu direito a ser. É uma aprendizagem, claro. Até porque é um caminho. Que só agora comecei a percorrer.

20200711

202007111034

"Que possas caminhar devagar" Parece fraco conselho. Pelo menos foi isso que eu senti quando o li, algures ameio do "Meia-Noite ou O Princípio do Mundo", do Richard Zimler. Como muitas vezes me acontece nas minhas leituras - há livros onde me demoro meses a fio - fechei-o e dei tempo e espaço para que esse conselho ecoasse em mim. E lá fui percebendo.
Durante estas duas últimas semanas pensei nesse conselho várias vezes. Na verdade, nem sempre me posso dar a luxo de caminhar devagar. O tempo urge, os afazeres também, e há uma espécie de urgência que, estupidamente, nem sempre é efetiva mas imaginária, interior, mais auto-imposta que ditada pelos acontecimentos. São rabos de palha, coisas que ficam cá por dentro e impedem de fechar e arrumar outras coisas que deveriam fazer já parte do passado roubando-me o sossego e a tranquilidade. E eu até tenho uma vantagem relativamente à maior parte das pessoas: nessas alturas gaguejo mais e quando me interrogo porque gaguejo mais reparo que a respiração é mais esforçada, menos pausada, e esse é um sintoma da intranquilidade que até então me passava despercebida. E que preciso de parar para escutar.
Poder caminhar devagar é, mais que um privilégio, uma forma de vida. Poder saborear o tempo, poder saborear o percurso do pensamento, poder saborear a oração, a tranquilidade, o silêncio, pauta muito o que pode ser o meu dia. Caminhar devagar é, assim, de alguma forma, definir o ritmo da passada da vida, não como dono e senhor do tempo - os donos e senhores nunca têm tempo para o tempo - mas como discípulo que escuta e procura perguntas.

20200710

202007100927

Por vezes tenho alguma dificuldade em entender a dificuldade alheia em viver num clima de interiorização e espiritualidade. Eu, que caminho imenso e que rezo imenso enquanto caminho, tendo a desvalorizar quando oiço as bocas do tipo "pois, tu tens tempo", ou "tu tens sorte" ou então a costumeira "vidinha boa" com que sou frequentemente bombardeado. É que depois vejo-os na conversa, a quantidade de horas desperdiçadas, todos os dias, em ditos que não levam a lado nenhum onde valha a pena estar, e concluo que, na realidade, a maior parte das vezes, como em quase tudo na vida, são escolhas que se fazem, são passos que não se dão, são formas cómodas de se estar, e as bocas fazem parte do esquema.
Mas outras vezes não.
Hoje conversávamos de como as coisas mudam quando estamos focados na eficácia. O nosso paradigma é outro, é o da rentabilidade do tempo, da sua poupança e, sem que nos apercebamos, as nossas conversas, os nossos gestos e atitudes passam a obedecer a esse paradigma. Nessas alturas, mesmo que caminhemos, mesmo que não estejamos à secretária diante do computador, a nossa cabeça está lá, não se consegue libertar e tudo é trabalho e anda à volta dele. E isto é extraordinariamente fácil de acontecer, bastando a inércia para sermos arrastados pela corrente, e até sermos invadidos pela sensação de culpa quando não o conseguimos fazer completamente.
E depois acordo. De repente. Estremunhado. Quase sempre sem me conseguir recordar exatamente do que estava a pensar, como se tivesse estado envolvido num sonho. E regressa o sabor das manhãs, o som do mar, a serenidade da oração, a tranquilidade das caminhadas matinais. E, com tudo isso, eu.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...