2011-08-16
Despedirmo-nos-emos hoje de Quelimane. Com chuva, como
convém a qualquer despedida que valha realmente a pena. Como sempre, hoje
estava às voltas na cama de manhã enquanto pensava em tudo o que se passou aqui
e no que se teria passado lá em casa. Como sempre, faço um balanço
despreocupado e pouco rigoroso. Valeu a pena? Será mesmo que valeu a pena? O
sacrifício que impus aos meus, a distância, a saudade, o dinheiro gasto (600
euros em telemóvel é uma verdadeira loucura), a minha ausência junto daqueles a
quem amo e a quem pertenço… Será que valeu mesmo a pena? Creio que a resposta
será sempre condicionada. Não ao passado, claro, nem sequer ao presente. Mas ao
futuro. Da Casa Appolonnie, principalmente. Será o seu futuro que me dirá se
valeu ou não a pena ter vindo para este fim do mundo tentar fazer alguma coisa
pelas pessoas daqui ou se não foi um mero capricho para encher o olho, a alma e
o ego.
Levo comigo, naquela bagagem que não acusa excesso de peso
no aeroporto, a maior experiência de viver em comunidade que alguma vez tive.
Não falo em família, porque essa, tenho a minha, que está a um nível afectivo
que não é comparável. Falo em amizade, falo em grupo, falo em fazermos tudo,
absolutamente tudo juntos. Falo em confiança e entrega e respeito e espaço;
falo em apoio, em cedência, em atenção ao outro, em disponibilidade; falo em pôr
os talentos a render, timidamente uns, mais confiantemente outros; falo em
cumplicidade, em planear e executar, em passar da fase do “isto não vai ser
possível” ao “conseguimos o impossível”; falo de conversar e brincar e fazer
palhaçadas e distrair o cansaço; falo de saudade, tremenda saudade, vivida e
chorada em silêncio ou então partilhada num dos enormes momentos de oração que
no final de cada dia, todos os dias, nos puxavam uns de encontro aos outros e
juntos nos elevavam até ao Pai; falo daquilo que verdadeiramente levarei daqui,
na bagagem pessoal: a entrega silenciosa e discreta da Nice, a pureza
cristalina da Nonô, a cuidadosa disponibilidade do Tommy, a timidez e
sensibilidade da Cata, a enorme maturidade da Piki, a coragem da descoberta da
Pat, a espontaneidade e autenticidade da Gabi, a capacidade de luta da Maggie, a
doçura desarmante e voltada para fora da Rita, a tremenda sensibilidade e
instinto de protecção do Mário, a capacidade de superação da Sofia e a beleza
absolutamente transbordante da Sara. Miúdos grandes, pessoas enormes, com quem
tive o enorme privilégio de partilhar a vida, de aprender, de chorar quando
choravam, de rir quando riam, de me entregar porque eles próprios se entregavam
sem reservas. E falo, claro, da enorme disponibilidade da Carla, sempre atenta,
sempre de sorriso vestido, mesmo quando não concordava com o que ia
acontecendo; do silêncio prudente, por vezes ensurdecedor e sempre desafiante
da Filipa, que tudo e todos ia dissecando, analisando, colocando uma semente
aqui e outra ali, com critério e enorme discrição; do tigre de papelão que é o
Paulo, diplomata por excelência, que animou quando era para animar, ralhou
quando era para ralhar, e soube sempre assumir a humildade de servir os outros
à revelia de si próprio.
Esta foi a melhor parte da minha Missão: o que se passava cá
em casa, dentro destas paredes, longe do caos que se passa lá fora. Este foi,
durante este mês, o nosso castelo, o nosso refúgio, o nosso porto seguro. Era
aqui que voltávamos no final de cada dia, era aqui que brincávamos e nos
tínhamos uns aos outros. Era aqui que vínhamos buscar as forças para enganar a
saudade dos nossos, daqueles que são, verdadeiramente, a nossa vida.
Não tenho a certeza que terá valido a pena. Não tenho hoje,
aqui e agora, a distância afectiva necessária para fazer esse tipo de
avaliação. Se valeu a pena pelo que se passou aqui em casa, apenas pelo que se
passou aqui em casa, então lamento, mas não valeu a pena. O que se passou nesta
casa passar-se-ia numa outra casa qualquer mais perto da nossa própria casa.
Porque o critério não podemos ser nós, porque não viemos para tão longe por
nossa causa, o que terei de ponderar é se valeu a pena pelo que fizemos fora de
portas, fora desta casa, fora deste castelo. Lá, onde a vida não se passa mas
se conquista, se arranca à própria vida todos os dias. E aí temos que ser muito
honestos e tentar perceber se conseguimos, realmente, mudar alguma coisa na
vida daqueles a quem nos entregamos.
É cedo, ainda, para fazer esse tipo de avaliação. Porque
depende, em grande parte, do futuro. Que a Deus pertence.
2011-08-14
Incrível como em Quelimane o tempo é a única coisa que mexe
rápido. Incrível como fui capaz de passar uma semana inteira sem registar aqui
o que quer que fosse. E quanto haveria para registar! Foi uma semana
intensíssima: electricidade na Appolonnie, pinturas na Família e Esperança,
ensino em todas elas, que também foi para isso que viemos até esta terra de fim
do mundo. Mas não foi uma semana fácil. Nada fácil. Muito menos quando partilhamos as 24
horas do dia num clima que nos desgasta, numa terra que nos consome, com
pessoas que nos absorvem completamente. Palavra aqui, palavra ali, lá
conseguimos levar a água ao nosso moinho. Outro dos
responsáveis pela minha ausência aqui foi o excelente livro que li aqui.
Acabei-o justamente ontem à noite, pelo que agora já pude aqui voltar. Há muito
tempo não lia algo tão útil, tão sistematizador dos sentimentos e das formas de
agir. Há muito tempo que não me dizia que tenho que comprar este livro várias
vezes: lá para casa, para o CR…
Apesar de não ter sido fácil, esta foi, sem dúvida uma boa
semana. Se calhar não tão intensa em termos afectivos – excepto ontem, quando
nos despedimos da Casa Esperança e Appolonnie – mas de consolidação de
trabalho. Fizemos coisas que quando nos foram propostas nos pareciam
impossíveis de concretizar, como pintar a Casa Família e instalar a
electricidade na Appolonnie, mas que ficaram todas no lugar. Segunda-feira,
quando ficar definitivamente colocada e paga a grade de segurança, poderei
finalmente respirar um pouco melhor: foram vários os riscos que corremos ao
colocar dinheiro nas mãos dos fornecedores sem qualquer garantia, mas, em parte
graças à atenção que sempre tivemos, tudo correu pelo melhor.
De todas as casas, é a Appolonnie que levo comigo. Passei lá
a maior parte do tempo desta missão e foi lá que investi as minhas forças e o meu
engenho. Saio razoavelmente satisfeito se atender às condições em que aqui
estive: pouco tempo, algum dinheiro e quase nenhum futuro. Saio, contudo, com
um enorme sabor a pouco. Não posso nem quero nem tenho vida para acompanhar as
coisas mais de perto, por isso também o não posso exigir a ninguém. Mas a
sensação com que os deixo é a de que bastariam 6 meses aqui com alguém com
cabeça e algum dinheiro e a vida daqueles miúdos alterar-se ia para sempre. E
para melhor! É muito esquisito para nós, que estamos habituados a ver no
dinheiro a medida principal de todas as possibilidades, depararmo-nos com uma
situação em que se calhar o dinheiro é o mais fácil de conseguir. E depois? O
que se faz com esse dinheiro? Como se gasta? Com que garantias? Será bem aplicado?
Por quem? Com que custo? Estranho, muito estranho, vivermos uma situação na
qual o mais difícil de conseguir são justamente as pessoas de confiança.
Estranho para mim, que confio logo à partida, que todos são inocentes até prova
em contrário, mas também estranho para todos nós, que sentimos que aqui é tão
fácil fazermos alguma coisa mas apenas porque todos fazem coisa nenhuma.
O que se passou na Casa Esperança é o paradigma disto: tinham
a capacidade para comprar as tintas, tinham as pessoas, mas não tinham ninguém
em quem confiassem. E assim, num país onde ninguém confia em ninguém, onde
todos se olham de soslaio quando é necessário um qualquer compromisso, tudo
fica por fazer: as estradas por arranjar, o lixo por apanhar, o outro para
cuidar. Até por causa disto, deste clima do adia sempre que puderes, Quelimane
foi uma verdadeira lição para mim. Eu, que tudo adio, que tudo deixa para as
calendas, que até gosto de alguma desordem que nos impeça de nos sentirmos
meras ferramentas em mão alheias, apanhei um verdadeiro choque ao verificar o
estado em que as coisas chegam quando não há organização. Espero que me sirva
de alguma coisa.
2011-08-08
Foi um excelente fim-de-semana. A partida engendrada pelo
Paulo e pelas Psis – eu nestas coisas apenas me deixo levar (estou mesmo a
ficar velhote!) – de os acordar às 6 da manhã para irmos para a Lagoa Azul
quando lhes tínhamos dito que poderiam dormir até às 10 e que iríamos para o
Seminário, resultou em pleno. As caras deles eram impagáveis! Quando chegamos à
Lagoa Azul deparamo-nos com um cenário absolutamente paradisíaco: um lago
lindíssimo, uma paisagem deslumbrante e um silêncio… Passamos lá um dia a
descansar e a fazer coisa nenhuma, que era justamente o que precisávamos depois
da semana que tivemos.
Mas as coisas não ficaram por aí. Tínhamos comprado
capulanas para todos e fizéramos uns convites especiais por quarto para um
jantar confeccionado pela Creche (nós) seguido de um espectáculo elaborado
pelos miúdos. Era condição essencial vir à Quelimaníaco: capulana, trança,
pinturas… Foi absolutamente fenomenal. A imaginação deles e delas na decoração
dos corpos, o comermos com as mãos, os espectáculos hilariantes que se seguiram
fizeram da nossa noite de sábado completamente memorável, daquelas que daqui por
vinte anos contamos aos amigos cheios de orgulho e saudade!
Ontem foi dia de limpezas, de Mephazé e de descanso. Depois
da missinha voltamos para casa, pusemos a casa num brinquinho – que bem
precisava! – e depois de almoçarmos foi descanso geral. Depois da pedra que o
Mephazé sempre me provoca ainda vi um filme com os miúdos e depois a Creche
teve uma reunião com as Irmãs para assentarmos mais uns alicerces na Casa
Appolonnie. Foi muito boa, a reunião. O PC tem-se esmerado no seu papel de
diplomata e com isso a sensação com que ficamos é que esta missão tem
recuperado muita da confiança que se perdera algures. A ponto de, no final da
reunião, as irmãs nos convidarem para um jantar de sábado com as meninas em sua
casa.
Foi um excelente fim-de-semana, tal como se pode aferir em
ambas as orações de sábado e domingo: orações descontraídas, alegres, onde se
celebrou, fundamentalmente, a alegria de estarmos aqui, juntos, e podermos
celebrar e agradecer o nosso trabalho. E isso foi muito bom. Tanto para mim como
para o PC os fins de semana são particularmente difíceis e neste conseguimos
dar a volta por cima. Hoje é dia de trabalho, começa uma semana dura onde temos
que acabar aquilo que começamos para que nada fique pela metade. Esperam-nos
uns tempos duros de muito trabalho e já de alguma saudade. Mas estamos prontos.
Vamos a eles.
2011-08-05
Hoje, foi, efectivamente, um dia diferente dos outros.
Porque senti, pela primeira vez, que tínhamos obtido um qualquer resultado
positivo no meio desta desgraçada gente de tão abençoada terra. O estar aqui,
agora, nesta casa que, não sendo minha, já permite que lhe reconheça os cantos, e saber que na
Appolonnie hoje vão dormir em camas com colchões e no fim-de-semana vão poder
saborear algo mais que peixinhos mal amanhados, dá-me uma certa paz. Efémera,
eu sei, mas ainda assim, alguma paz. Hoje, pelo menos hoje, fizemos alguém
feliz. Em quantos dias da minha vida posso afirmar isto sem me envergonhar da
resposta? Em quantos dias da minha vida consegui dar aos outros mais que meras
palavras? Em quantos dias da minha vida senti, verdadeiramente, que eu posso afinal ser as mãos daquele que
conta com as minhas mãos? Em quantos dias da minha vida eu me deixei comover
pela alegria contagiante e absolutamente cristalina de quem recebe aquilo que
para mim é garantido? Em quantos dias da minha vida eu posso afirmar que a
minha felicidade mora, efectivamente, na felicidade de quem tenho diante de
mim?
Hoje foi, efectivamente, um dia diferente dos outros.
Já não era sem tempo.
Deus seja louvado!
2011-08-03
Hoje foi um dia absolutamente fail, como diz o pessoal cá da
casa. De manhã não consegui ir à Casa Appolonnie, o que não me convinha nada.
Preciso de avançar com as coisas com o Teófilo e a chuva de ontem apenas
complicou as coisas: ontem não pude ir e hoje não conseguia chegar. A água era
tanta que dava pelo joelho, pelo que lá tive que ir para a Casa Esperança. E
pintar, ainda por cima, que é uma coisa que não gosto de fazer. Mas lá pegamos
nos rolos e pintamos uma das enésimas paredes que a Irmã Idalina, no seu jeito
desenrascado, nos destinou. À hora do almoço era clara alguma tensão do Paulo:
ele sabe que não temos qualquer possibilidade – nem vontade – de satisfazer os
desejos dela mas é complicado para ele combater as suas pretensões de forma
diplomática. E depois fica tenso, entalado entre o que sabe que deve ser e o
que tem que dizer. Eu entendo, passa-se um pouco isso com todos nós, que todos
os dias somos abordados no sentido de dar isto ou aquilo, de prestar este ou aquele
serviço. Já o sentimos mais que uma vez na Casa Família, com o Irmão António a
querer que façamos isto e aquilo, mesmo ao fim-de-semana, e até na Casa
Appolonnie, com as permanentes solicitações e necessidades absolutamente
prementes.
Na nossa oração de ontem, que era sobre cores, escolhi o
branco e a palavra “racismo”. Nunca como até aqui eu senti tanto a cor da pele.
Quando fui ao hospital com o Miguel foi impressionante: passamos à frente de
todos e nem sequer tivemos oportunidade de contestar. Quando andamos na rua,
seja a que hora for, seja em que local for, ora somos olhados de soslaio ora
vêm em nós o porquinho mealheiro. É absolutamente impressionante como estas
coisas se notam cá por estas bandas!
2011-08-02
Chove a cântaros. As ruas devem estar num lamaçal
impressionante e não devemos sair de casa. Pelo menos não de manhã. Já ontem
choveu bastante e de manhã tivemos alguns casos de frio e tosse, pelo que não
convém nada arriscar. E não arriscaremos.
Foi um bom dia, o de ontem. E foi geral. Quando vínhamos
para casa conversava com alguns e todos diziam que tinha sido um bom reinicio.
E sentíamos todos – sem o confessar – que tínhamos algum receio deste dia: a
semana passada foi dura e era importante que começássemos bem. No final do dia
estávamos todos bem dispostos e contentes com o que fizéramos e isso é muito
importante para o bem-estar geral. E reflecte-se muito nas orações, por
exemplo. A de ontem – que foi organizada pelo meu grupo – foi levezinha e bem
disposta, e isso apenas foi possível porque estávamos todos bem.
Como estava previsto, fui para a Casa Família. E gostei.
Estive apenas com o Chissano e tive o trabalho facilitado por causa disso.
Também ontem estava lá menos gente porque a escola já começou e para além disso
creio que depois de uma semana onde as meninas causam um natural impacto e
fascínio nos rapazes eles acabam por perceber que é necessário separar águas e
e escolhem outras coisas para fazer. As solicitações e que vão sendo mais que
muitas. O Paulo ainda ontem ao almoço estava verdadeiramente chateado porque na
Casa Esperança pediram-nos para pintarmos a casa toda e nós não somos trolhas.
Também o Ir. António pediu para irmos ao sábado ao seminário ensinar novos
cânticos aos seminaristas. Todos os dias temos alguém a pedir alguma coisa à
porta e o Joaquim também não nos larga a pedir para resolvermos o assunto dele,
que em boa verdade nem percebemos muito bem qual é. Esta gente vive na miséria
e muitas vezes não tem mesmo outra possibilidade senão pedir. Quando ando na
rua tenho reparado na imensa quantidade de t-shirts que não são de cá e não
podem ter chegado aqui senão pelos missionários como nós que deixam tudo quando
partem.
Ainda ontem dizia à Belita que estávamos rodeados de miséria
por todo o o lado. É impressionante! As condições de vida aqui são terríveis. A
nossa casa, que é uma boa casa para os padrões moçambicanos é pior que qualquer
casa do Bairro de Ramalde: degraus partidos, retoques apressados, móveis
velhinhos… Mas é uma boa casa, com uma boa estrutura, mas o problema aqui –
como em todo o Moçambique, aliás – é a falta de manutenção. Ainda ontem a Ir.
Dizia que os contentores estão voltados para baixo porque os camiões do lixo
estão avariados e não há forma de pegar naqueles contentores cheios. As
condições sanitárias e a higiene são, para mim, dos maiores e mais chocantes
problemas de Moçambique. É impressionante a profusão de cheiros de corpos e de
lixo misturado com caril com que todos os dias somos inundados. E o lixo
espalhado na rua, na beira dos caminhos, junto aos poços de água, é uma
constante por aqui. É incrível como seria fácil, com um pouco de organização,
colmatar este facto. É incrível como não se faz nada e s deixa que ratos e
homens vivam lado a lado pacificamente.
Lamento mas África não tem nada a ver comigo. Já tive a
minha dose de lixo e de miséria e não sinto necessidade nenhuma de voltar para
lá. África vale a pena é pelas pessoas e pela quantidade de solicitações que
nos interpelam: há tanta coisa para fazer, tanta coisa simples que lá em
Portugal passa completamente despercebida, que é muito fácil sentirmo-nos úteis
aqui. E isso faz muito bem ao nosso ego.
2011-08-01
Foi um bom fim-de-semana. A decisão de irmos até Zalala no
sábado foi muito importante para o grupo. Chegamos a sexta-feira rebentados e
começavam já a aparecer pequenas picardias no seio dos miúdos. Nada mais
natural, até porque alguns deles não estão habituados nem às lides da casa nem
sequer a viver com outras pessoas no mesmo espaço. Em Zalala deu para estarmos
apenas juntos, sem qualquer outra preocupação que não fosse a de simplesmente
desfrutar a paisagem e o mar. Apesar de todos contarmos com outra coisa – creio
quem definitivamente, temos que ter alguma calma com as expectativas que
criamos acerca de Moçambique – foi um dia muito bem passado, até porque
conseguimos almoçar num sitio que, para os padrões de Moçambique, era
excelente. Ao fim do dia a coisa complicou-se um bocado porque a Patrícia teve
uma recaída. Mas estávamos preparados e conseguimos que as coisas não
escapassem ao nosso controlo.
No Domingo foi dia de Eucaristia, descanso e reunião. Por
esta ordem. E foi um bom dia. Deu para retemperarmos forças, para conversarmos
olhos nos olhos e afinarmos estratégias de vida comum, e a oração foi um bom
lançamento para esta semana que hoje começa. No final do dia de ontem a
sensação que tinha é que o grupo tinha voltado ao seu normal: remamos todos
para o mesmo lado, subimos mais um degrau no capítulo da confiança e estamos
prontos para as lides. Decidimos que eu e as Psis trocaríamos de casas: elas
passariam a ir à Applonnie e eu ficarei mais pela Casa Família. Apesar de não
ser o mais cómodo para mim – gosto muito da Appolonnie – é certamente o melhor.
Desta forma conseguimos todos acompanhar o que vai acontecendo em cada uma das
casas de uma forma mais próxima das pessoas e mais desapaixonada, mais próxima
da realidade. Isso é muito importante que aconteça, nomeadamente na Casa
Appolonnie, que irá exigir uma acção posterior à nossa partida. Quanto mais
olhos a analisarem melhores respostas e estratégias encontraremos. Por outro
lado, irá ser bom eu ir à Casa Família. Creio que as expectativas vinham
demasiado altas relativamente a esta Casa, que é tudo menos fácil. Os rapazes
que lá se encontram são naturalmente ariscos e alguns deles estão lá
exclusivamente pelas meninas. A sensação que tenho é que o Ir. António lavou as
mãos daquela casa ao delegar tudo no Rogério e agora aquilo é um pequeno feudo
onde tudo é controlado com mão de ferro e, sobretudo, na base do privilégio do
chefe. Talvez esta semana passada lá altere esta impressão que eu tenho. Vamos
ver: olhos abertos e ouvidos atentos.
2011-07-29
Sinto-me como uma formiguinha, que vai fazendo o seu
trabalho pequenino, pequenino, e jamais consegue ter uma visão do global, do
que já foi feito e do que faltará fazer. Acabo de chegar da casa da Dª Lígia,
uma portuguesa de cerca de 70 que já cá vive há 46 e que tem apoiado de alguma
forma a Casa Appolonnie. Tenho andado esta semana toda a recolher dados, a
falar com este e com aquele, a ver com profundidade, a tentar discernir o que é
real do fictício para descobrir uma forma de chegar a uma solução para aqueles
rapazes. Creio que o choque inicial, que me afectou profundamente nos dois
primeiros dias, começa agora a ficar um pouco atenuado. E isso é bom… desde que
não me deixe de comover. Mas é justamente isso que tenho feito, tenho-me mexido
para conhecer as pessoas, as várias visões da questão e as várias abordagens
possíveis do problema. Com isso não tenho estado assim tanto tempo com os
meninos, a explicar-lhes, e por isso tenho que tentar hoje, ao jantar,
pedir-lhes desculpa, porque eles é que dão o corpo ao manifesto.
Foi bom falar com a Dº Lígia mas foi melhor estabelecer
contacto com ela. O Teófilo foi connosco pelo que não estava muito à vontade
para conversar com ela, mas no Domingo, depois da Eucaristia da Catedral, vou
tentar conversar com ela mais em profundidade, escutar o que ela pensa, que ela
conhece o terreno melhor do que eu.
Agora é tempo, fundamentalmente, de balanço e descanso.
Amanhã iremos até Zalala, que os efeitos do cansaço já se começam a notar,
ainda que de forma discreta. Há já alguns resmungos, leves, que são prontamente
colmatados por todos nós mas que são sinais que exigem atenção. Sinto que aos
poucos vou ficando mais racional e menos emotivo, o que não é mau. Temos uma
responsabilidade acrescida em cima dos ombros e temos que estar atentos para o
que se passa à nossa volta, Vamo-nos apercebendo que não é fácil ajudar esta
gente, que há também pessoas menos boas e que viver na miséria tem custos, como
não poderia deixar de ser. Por isso gosto tanto da Casa Appolonnie: é que,
apesar da miséria, não encontro muitas recriminações ou tentativas de
aproveitamento. Encontro algumas, poucas, quase em surdina, mas outra coisa não
seria de esperar para quem acha que a resolução dos seus problemas está ali,
junto deles, à mão de semear. Não falo com eles acerca disso e tento apenas
brincar e estudar, dar-me bem, fazê-los sentir que gosto deles e que são
importantes para mim. Se o consigo fazer… não sei.
2011-07-28
Confessava hoje, depois de sair, que não consigo desligar da
Casa Appolonnie quando de lá saio. Não consigo e, em boa verdade, nem sequer
tenho a certeza de o querer conseguir. O desafio de nos deixarmos comover com
os outros foi aceite logo à partida quando quis vir para cá. Como diz a
Catarina, se fosse para passar ao de leve nas coisas teria certamente ficado em
cãs, rodeado por todos aqueles a quem mais amo, comodamente instalado no sofá.
Não foi isso, contudo, que escolhi. Não foi para isso, certamente, que fiz
milhares de quilómetros até esta terra do Nunca. Mas também não precisava de
tanto. Bastar-me-ia para saciar o ego uma qualquer Casa Esperança onde há
dificuldades, sim senhora, como em todo o Moçambique, mas que é um oásis de
organização, que é a principal lacuna deste país. A questão, a verdadeira
questão, é que sinto que o Colégio do Rosário, neste caso por meu intermédio, é
quase a última esperança de um conjunto de miúdos que são já rapazes, que não
se contentam mais em pedir para conseguirem o que procuram. Não são mai
pequeninos e girinhos, são jovens adultos, bem constituídos, que não têm onde
cair mortos e que sofrem todos os dias por causa disso. São rapazes
respeitadores, de uma humildade que quase magoa de tão deslocada face à miséria
onde vivem. Não reivindicam nada, absolutamente nada, agradecem tudo e pedem,
pedem, pedem. Atenção, carinho, solução para o desespero onde se encontram,
querem ser alguém. Nunca me tinha deparado com este nível de miséria. Com a
vergonha de ir para a escola esfarrapados e descalços onde são alvo da chacota
de todos, a vergonha de pedir, de estarem dependentes de quem não lhes liga
absolutamente nenhuma. Tenho que dar a volta a isto. Nem que seja para calar a
minha consciência.
2011-07-27
Coisa esquisita, esta, que me acontece sempre que as emoções
são mais fortes que o costume. As palavras não me saem, tudo me soa a
banalidade, a música pimba daquela barata e detestável. São já incontáveis as
vezes em que peguei no computador para escrever qualquer coisa do que se tem
passado aqui em Moçambique e acabo sempre por o fechar sem registar nada. Não é
novidade para mim. Acontece sempre que transbordo, como se não conseguisse
lidar com emoções fortes. Tento sempre racionalizar, estabelecer uma ligação
directa entre o coração e a cabeça, de forma a sistematizar o que vai cá por
dentro, a organizar as ideias e, sobretudo, os sentimentos. Ainda não o
consegui. Não como queria. Ontem, por exemplo, não conseguia deixar de me
sentir zangado: comigo próprio, com o mundo, com Quelimane, com Moçambique, até
com Deus, que não tem culpa nenhuma. Mas quem não tem culpa mesmo são aqueles
meninos da Casa Appolonnie e são eles quem acorda todos os dias num mundo cheio
de certezas de coisa nenhuma. Eles é que não têm culpa. Nem sentem culpa. Vão
vivendo dia a dia, momento a momento, sorriso a sorriso, como se encontrassem
na sua miséria o segredo para ser feliz que escapa a tantos de nós. Estava
mesmo zangado, ontem. Como não me lembro de ter estado ultimamente. Só me
lembrava de Gandhi ou da Madre Teresa ou tantos outros que, quando confrontados
com estas situações, decidem assumi-las como suas e não se escondem atrás de
justificações. É impossível para mim ficar impávido e sereno quando sei que
eles não jantaram. É impossível sentir a comida a passar sem que pense neles a
olhar para as paredes cheias de nada. É impossível sair daquela casa e fechar,
desligar, fazer de conta que nunca aconteceu: que nunca estive em Moçambique,
nunca conheci a Casa Apolónia, nunca conheci o Miguel, ou o Chinho ou outros ainda
sem nome para mim mas com olhos, que me olham, que me interpelam e que, ainda
que não o façam, me acusam. Gostava de conseguir fintar o meu próprio destino e
conseguir ser mesmo o salvador da pátria, aquele que altera as vidas dos que
sofrem, aquele que consegue fazer sonhar e roubar motivos para se dizer “por
vezes sentimos que estamos para aqui num canto e ninguém nos liga.”
Hoje, com a Graça de Deus, as coisas alteraram-se um pouco.
Pelo menos os meninos já comeram, o Miguel já foi ao hospital e eu já consegui
acalmar um pouco a minha consciência. Não resolvi nada, claro. Limitei-me a dar
uma aspirina para aliviar um pouco a dor de cabeça sabendo que não está aí,
ainda, cura nenhuma. Mas pelo menos sinto que ganhei algum tempo e que o tempo,
que aqui corre devagar, não é menos tempo que o tempo no meu mundo. Importa
agora pensar com seriedade e pés assentes nesta terra escura como as caras
daqueles com quem nos cruzamos todos os dias. Importa encontrar soluções que
sejam soluções e apenas serão soluções se o forem efectivamente para aqueles
que delas precisam como de pão para a boca. Não valem aqui gestos bonitos e
melhores intenções. Não valem. Nada. Absolutamente nada. Enquanto não se
conseguir uma forma de saciar a fome daqueles meninos, tudo o resto é história
para acalmar as nossas consciências. Tudo o resto é demagogia e história para
entreter meninos. Se tivermos que encher os bolsos a alguém para que os meninos
comam, seja. Antes isso que eles não terem futuro. Afinal, desperdiçamos tanto
com coisas que valem tão pouco que bastaria um pequenino esforço e as coisas
melhorariam certamente. E eu hei-de conseguir que melhorem. Tenho que
conseguir. Sob pena de não mais encontrar descanso.