20230330

20230330

Hoje, no GEP3M - Grupo que Escuta a Palavra e a Põe em Prática como Maria - que tem sido uma excelente forma de refletir e rezar o evangelho de cada domingo próximo, dizia que Jesus amou sem limites, que ninguém lhe tirou nada porque, antes, Ele já o tinha oferecido. Embalado, como fico sempre que falo do que verdadeiramente me apaixona, dizia ainda que Amar até ao limite é essa dispensa do compromisso, do que tem que ser, em favor da pura gratuidade do amor, do dar absolutamente de borla, sem exigir nada em troca. 

Acontece-me muitas vezes encher a boca com coisas destas, que são tão bonitas de dizer quanto difíceis de realizar. Na prática, até o podemos dizer, olhos nos olhos, convictos que essa é, na realidade, a mais bela maneira de amar: querendo apenas o bem da pessoa amada, em total liberdade, fazendo vida do velho ditado do pássaro libertado que, se voltar, será nosso para sempre. A questão é o que fica a corroer a alma assim que largamos a mão de quem amamos, e lhe sentimos a falta. É a desolação que acontece quando a esperança dá lugar à dúvida e nos abre a possibilidade de, afinal, estando a gaiola aberta, nunca mais escutarmos a doce melodia do pássaro. No fundo, no fundo, duvidamos, questionamos se apenas nós amávamos, se tudo o mais era mero compromisso.

No entanto, acredito que é justamente neste momento limite, em que a vida nos obriga a escolher entre a dúvida e a esperança, que o amor se prova. A verdade é que, se o pássaro realmente não voltar, é porque não era de amor recíproco que se tratava, mas de qualquer outra coisa. Posse, comiseração, obrigação, pena ou comodismo, até o direito natural de empreender novos voos, conhecer novos horizontes, o que quer que seja, que é certamente altamente justificável mas é sempre, sempre, infinitamente menos que amar. O paradoxo é que a dor da ausência, a improbabilidade do regresso, apenas confirma que aquela foi, afinal, a decisão mais acertada. Porque nenhum amor pode sobreviver sem a liberdade inteira, plena, absoluta, de amar. E a maravilha divina de se sentir amado.

20230327

20230327

Ainda que não o desejemos, ainda que o recusemos, ainda que não tenhamos disso consciência, a nossa vida configura-se com a vida de Jesus. Ou melhor, é a Sua vida que se configura com a nossa própria vida. Talvez por isso, o período da Quaresma me seja tão significativo e a Via Sacra seja, provavelmente, o meu ritual preferido. Sendo sempre doloroso, não me é nada difícil reconhecer-me naquele caminho. Também eu caí bem mais que uma vez, também eu tive (mais que) um cireneu, também eu tive quem, recorrentemente, me limpasse o rosto, e também eu, depois de chorar baba e ranho e ter duvidado de tudo e de todos na maior das solidões (sempre auto-infligida e auto-imposta), acabei por ressuscitar. Por isso, nada na Via Sacra me é estranho. E nada em Jesus me é estranho. A não ser a responsabilidade, que é sempre minha, exclusivamente minha, feita à custa de escassa racionalidade e de um certo embarcar na fantasia ignorando a realidade do chão que piso. Não me recordo de alguma vez ter podido sacudir o pó da responsabilidade de cada vez que mergulhei nos meus infernos. Estivesse eu mais atento, estivesse eu menos convencido da minha razão, estivesse eu mais aberto à escuta dos que me amam, e ter-me-ia apercebido, primeiro, que era amado, e, depois, que nos momentos escuros nada há de melhor, mais sensato e mais corajoso que abandonar-me aos que me amam. Tivesse eu a capacidade de fazer isso e teria evitado muita dor, sobretudo aos que, como Maria e João, nunca arredaram pé de junto da minha cruz.

Hoje, porque o conversamos no caminho, rezei pelo sr Mário. Na verdade não o conhecia bem. Vira-o meia dúzia de vezes, sem lhe prestar grande atenção, enquanto tratava do jardim lá de casa.  Eu tenho impregnada na vida esta coisa dos outros serem apenas outros e, enquanto não faço o esforço consciente de passarem a ser meus, são sempre outros. E a verdade é que o Sr Mário nunca foi dos meus. Por isso não posso dizer que tenha sentido grande comoção quando soube que se tinha suicidado. Mas hoje falamos disso e rezei por ele. Sobretudo pela família dele. Há muitos anos, um bom amigo morreu. Num determinado período tinha sido fundamental na minha vida. Foi com ele que aprendi a cantar e a tocar em eucaristias e partilhamos deliciosas memórias de retiros e encontros e brincadeiras parvas que se têm apenas com aqueles com quem nos sentimos nós próprios, sem qualquer receio. Uma amizade que se estendeu com facilidade aos seus pais e irmãos, que têm, ainda, hoje, um lugar especial cá por dentro. Quando morreu, correu à boca fechada que se teria suicidado. Recordo-me do tremendo sentimento de culpa que se abateu sobre mim. Na altura, a vida já nos tinha enviado por caminhos diferentes e só nos víamos ocasionalmente e sempre de corrida. Já não sentávamos e já não conversávamos. E eu já não sentia essa disponibilidade interior para o fazer. Recordo-me que, quando soube da sua morte, senti pela primeira vez uma enorme necessidade de estar num velório e num funeral, de o acompanhar e à sua família. E, mais tarde, senti necessidade de pedir perdão aos seus pais e irmãos por não ter estado lá quando teria sido necessário.

Não haverá maior profundeza do inferno que o desespero que leva ao suicídio. É necessária uma solidão, uma desesperança, uma escuridão, que apenas conseguimos imaginar. E uma total ausência de sentido. Não creio que seja um ato de egoísmo, mas de libertação, enraizado no erro de pensar que os que nos amam ficarão melhor sem nós. Nunca ficam. Sobretudo se nos amam verdadeiramente.

20230316

20230316

Por vezes, a tentação de ser de novo é enorme!. Fazer reset, como se de um computador eu me tratasse, limpando o histórico sem deixar rasto, podendo-me apresentar ao mundo de cara nova. Por vezes há a ilusão que o perdão é isso mesmo, um recomeçar total e absoluto, a partir da raiz, deitando fora tudo o que já provocamos. Não é isso que somos. Não é assim que somos. Muito menos é a isso que somos chamados a ser. Se se tratasse apenas de nós, se nos focássemos apenas em nós, se apenas nós contássemos, isso até seria possível. Mas nunca somos apenas nós. As consequências nunca são apenas nossas. Por isso, nunca somos de novo, carregamos a nossa vida e a imperiosidade de viver a partir da nossa vida. O que não seja isto é ilusão. E alienação. Quando magoo e me arrependo, quando não sou digno e me arrependo, quando estou errado e me arrependo, não posso fingir que não magoei, falhei ou errei. Não o posso apagar nem de mim nem dos outros, mas tenho que tentar refazer, reconstruir a partir dessa realidade, que é sempre dolorosa, mas é sempre realidade. Tenho que incluir essa dor, essa vergonha, naquilo que há a ser perdoado e aprender a viver com essa mágoa até que, um dia, consiga sentir-me restaurado pela bondade e no alívio do perdão. Até lá, até que me sinta perdoado, olhos baixos e consciência que, por muito que o deseje, não posso alterar o curso da água que já passou. E tentar aprender. E entregar-me. A Deus. Ao Seu Amor. Que me chega sempre pelo amor dos outros. Também quando me perdoam.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...