Rerum Novarum, 1891. Poderia apostar que quase ninguém sabe
o que é. No entanto, é um documento importantíssimo na História da Igreja. O
mundo ocidental de então estava no início da industrialização e, com ela, a
procura da riqueza exacerbada, a qualquer custo, sob qualquer sacrifício. O
Papa Leão XIII, constatando a progressiva exploração e consequente desumanização
dos operários que, considerados meras ferramentas produtivas, trabalhavam horas
e dias a fio, publica no dia 15 de maio de 1891 a encíclica Rerum Novarum (Das
Coisas Novas), Sobre a Condição dos Operários. Nesta encíclica, que é tida como
a fundadora da Doutrina Social da Igreja, é lançado um olhar sobre os vários
aspetos que orientam a sociedade: o primado do trabalho, a noção de bem comum,
o salário justo, os direitos e deveres dos trabalhadores e dos detentores do
capital. Para espanto de muitos, incentivava os trabalhadores a organizarem-se
em sindicatos, avisando, no entanto, do perigo encantatório dos “ismos” –
socialismo, comunismo, capitalismo, liberalismo – que mais não pretendiam que
instrumentalizar o homem, sonegando-lhe a humanidade.
Depois da Rerum Novarum foram várias as encíclicas sociais escritas
pelos Papas que sucederam a Leão XIII. À medida que o mundo se transformava - e
com ele as relações sociais, económicas e políticas - o olhar da Igreja era
atualizado, oferecendo novas propostas, apontando novos equilíbrios, mas tendo
sempre como prioridades a pessoa humana e o bem comum, essenciais para
transformar a sociedade com a força do evangelho, contribuindo na construção do
Reino de Deus.
Recentemente, a 3 de outubro último, o Papa Francisco fez
publicar, em Assis, a encíclica Fratelli Tutti, Sobre a Fraternidade e a
Amizade Social, na qual propõe “uma forma de vida com sabor a Evangelho”, numa “humilde
contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de
eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de
fraternidade e amizade social que não se limite a palavras.”
Logo no primeiro capítulo, o Papa Francisco faz uma leitura
desencantada da atualidade, pois constituem “tendências do mundo atual que
dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal”. Refere o sonho de uma
Europa unida que não se concretizou, dos sinais de regressão da história, com
novas formas de egoísmo e de perda do sentido social. Importante para o Papa
Francisco – que veio do fim do mundo, como disse em tom de brincadeira logo
depois da sua eleição – é a tentação para a imposição de “um modelo cultural único,
que unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”, que “nos torna
vizinhos, mas não nos faz irmãos.” Já na Christus vivit, a Exortação Apostólica
aos Jovens, o Papa Francisco alertava para os perigos do desenraizamento como
forma de as ideologias reinarem sem oposições. Neste capítulo, duro, como acontece
sempre que precisamos de ver e não apenas olhar para a realidade, são-nos recordadas
a cultura do descarte, a escassez dos Direitos Humanos, que não são ainda para
todos, os conflitos e medos atuais, passando pela pandemia, globalização e
progresso. É um retrato desencantado, de um mundo doente, cujos sintomas
importa analisar para que se possam tratar adequadamente.
E o tratamento, no entendimento do Papa Francisco, é-nos tão
familiar quanto difícil de concretizar. Na realidade, é-nos recordada uma
daquelas parábolas que lemos vezes sem conta, que conhecemos de trás para a frente,
mas remetemos para outros tempos e, se possível, outras personalidades. Efetivamente,
o Papa Francisco escolhe a parábola do Bom Samaritano como fundamento teológico
da cura, como forma de ser e de fazer, recordando-nos que “é o amor que rompe
as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite
construir uma grande família onde todos nos podemos sentir em casa.”
Saboreando esta parábola, conseguimos apreciar a sua
atualidade, até porque o Samaritano deu ao homem que tinha sido assaltado e
ferido, “algo que, neste mundo apressado, regateamos tanto: deu-lhe o seu
tempo. Tinha certamente os seus planos para aproveitar aquele dia a bem das suas
necessidades, compromissos ou desejos. Mas conseguiu deixar tudo de lado à
vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu
tempo.” Soa-nos familiar? Certamente! De facto, “estamos todos muito
concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está mal incomoda-nos,
perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios.
São sintomas duma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o
sofrimento.” E continua o Papa Francisco: “Diante de tanta dor, à vista de
tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer
outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem
se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada.” Assim, a única solução
para uma sociedade enferma é cuidarmos “da fragilidade de cada homem, cada
mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a
mesma atitude de proximidade do bom samaritano.”
Os capítulos que se seguem fornecem-nos as pistas para a ação.
Detetada a maleita, consciencializadas as suas origens, conhecido o seu remédio,
importa agora estendê-lo a todas as vertentes da sociedade. O Papa Francisco,
ao longo dos restantes capítulos desta belíssima e encantadoramente simples e
acessível encíclica, vai desmistificando e desmontando argumentos que escutamos
todos os dias, evidenciando a vacuidade de chavões como aquele que vem da
Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, sendo que a
Fraternidade ficou esquecida, quando “tem algo de positivo a oferecer à Liberdade
e à Igualdade. Que sucede quando não há a fraternidade conscientemente cultivada,
quando não há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação
para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da reciprocidade e enriquecimento
mútuo como valores? Sucede que a liberdade se atenua, predominando assim uma
condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma
coisa, ou apenas para possuir e desfrutar.”
Naturalmente, a encíclica Fratelli Tutti é demasiado rica
para que possa ser devidamente escalpelizada nestas páginas. Nem é isso que se
pretende, mas apenas suscitar a leitura de um documento tão importante e basilar
para todos os cristãos e homens de boa vontade.
Na nossa paróquia esta não é uma linguagem estranha para nós.
Graças a Deus, e ao nosso pároco, somos uma paróquia atenta aos mais
desfavorecidos, aos que habitam as margens. Iniciativas como a Mesa de São
Pedro, os Vicentinos, a forma como acolhemos a família Síria, são pequenos
exemplos de como podemos e devemos imitar o Bom Samaritano e cuidar de quem está
física ou moralmente ferido. No entanto, continuamos a virar a cara para o
lado, continuamos a escolher não ver, continuamos a seguir caminho, por vezes
enchendo-nos de boas mas artificiais justificações para que continuemos a conseguir
viver com a nossa má consciência. Todos temos ainda muito que caminhar. Gostaria,
por isso, de terminar com parte de uma das orações com que o Papa Francisco
termina esta encíclica:
“Concedei-nos, a nós cristãos, que vivamos o Evangelho e
reconheçamos Cristo em cada ser humano, para O vermos crucificado nas angústias
dos abandonados e dos esquecidos deste mundo e ressuscitado em cada irmão que
se levanta.”
Tão simples e, no entanto, tão exigente!