20241031

Ainda me espanto! Perante o desafio de pensar num adulto que tenha sido significativo na minha infância e adolescência - no sentido de me ter feito sentir amado, desejado, acarinhado - o que senti foi uma inesperada mas profunda solidão. E dor. Há perguntas que ainda não suporto. Há questões que ainda prefiro deixar arrumadas, bem ou mal arrumadas, para que não tenha de mexer nelas. Porque nada de bom daí virá se o fizer. Não tenho nada a ideia que se deve falar de tudo, pôr tudo a descoberto, para se resolver. Há coisas que não têm resolução possível. E há coisas cujo custo de resolução seria demasiado alto para muita gente, e eu não tenho o direito de, para ficar bem, pôr outras pessoas mal. É tão simples como isso. É até lógico. Ficaria eu bem sabendo que, para aliviar a minha pressão estaria apenas a enviá-la para outros? Claro que não. Então... Mais vale ficar quietinho no meu canto. Normalmente lido bem com estas dores: remeto-as para os confins e não penso nelas. Algures no tempo - nem que seja quando morrer - elas serão resolvidas. Ou não. É lidar.

 Gosto menso da ideia da serenidade. Gosto imenso do silêncio, da quietude, do abandono à aparentemente coisa nenhuma que a maior parte das vezes se transforma no mergulho na imensidão. Gosto do escuro, do recolhimento, do olhar para dentro e aí permanecer. Gosto do tempo, do dar tempo, do ter tempo, para poder acampar dentro de mim e deixar fluir e fruir, serenamente, do que me habita. 

O problema é que raramente consigo essa serenidade. Nos dias bons até posso procurar um lugar calmo e propício, até me posso isolar, até posso encontrar o silêncio exterior que me proporcionaria esse encontro profundo comigo mesmo. O problema é que nem sempre a cabeça se cala. Mal me acomodo, mal me aconchego, lá começa a sua berraria com a imensidão do que tenho para fazer, do que tenho para resolver do que ainda não fiz…

Hoje é um dia desses. Complicados. E preciso de serenar. Muito.

20241024


 

Nunca mais esqueci o filme Crash (Colisão), de Paul Haggis. Naquele filme não há maus absolutos nem bons imaculados: há pessoas e circunstâncias, há pequenos acontecimentos que vão envolvendo uns e outros, sendo que uns e outros são capazes de coisas boas e más dependendo das respostas que vão conseguindo dar ao que vai sucedendo. Há como que uma cozedura progressiva, um progressivo adormecimento da razão e dos sentidos que, tal como acontece com a rã, mantém a todos indiferentes a uma água que vai sendo, progressivamente, mais quente. Tenho-me lembrado tanto deste filme!

De acordo com a informação que vou conseguindo ter, não encontro grandes culpados nos acontecimentos mais recentes de Lisboa. Encontro medo. Encontro sofrimento. Encontro respostas ao medo e ao sofrimento. Por isso encontro tragédia. A tragédia de uns polícias cansados e a maioria das vezes frustrados face ao que, dia após dia, noite após noite, têm de enfrentar; a tragédia de pessoas remetidas para uma berma, cansados de tanto lutar para chegar a lado nenhum, para se sentirem coisa nenhuma. A tragédia do medo, que perpassa o dia de uns e de outros, um medo em tudo semelhante, que em tudo os une: medo do que possa acontecer aos que os esperam em casa e que uns e outros querem proteger; medo do que possa acontecer a eles próprios, medo da impotência, da irrelevância da sua própria vida.

Nada disto começou esta semana. Nada disto é absolutamente inesperado por nenhum de nós. E estamos, de certeza, a fazer qualquer coisa muito errada, para permitirmos, todos, que um caldo destes vá sendo cozinhado enquanto escolhemos não ver, não agir, não aliviar o sofrimento. De todos. Porque é de sofrimento que se trata. De todos. Sofrimento antes dos acontecimentos, sofrimento durante os acontecimentos, sofrimento depois dos acontecimentos. Um sofrimento que eu poderia aliviar, à medida das minhas possibilidades. Um sofrimento que cada um de eus poderia aliviar, à medida das possibilidades de cada um dos eus. Porque não adianta, agora, vociferar. Não é pela gritaria que chegamos lá. Nem pela massificação. É por aquilo que eu, hoje, aqui e agora, escolho fazer. Para aliviar o sofrimento daquele que está a escassos metros de mim. O resto são desculpas.

20241017

 Devemos passar de um “ser de” e um “ser para” para um “ser com”. Há uma verticalidade no "ser de" e "ser para" que é mais consentânea com uma relação de poder que com uma relação de amor. Na verdade, eu não sou "para" nem "de" Deus ou dos outros mas sou "com" Deus e "com" os outros. Esta horizontalidade, este "com", apela a uma comunhão, uma ausência de posse, uma aprendizagem mútua que conduz ao aprofundamento da relação, ao crescimento da intimidade e, por conseguinte, do amor. E ao reconhecimento. Tão importante!

No filme do Avatar o que retive mais não foi a tecnologia fabulosa mas o Na'vi "Oel ngati kameie" (I see you). O "eu vejo-te", sendo aparentemente simples, tem em si uma série de implicações absolutamente determinantes. O Papa Francisco chama-nos muitas a vezes a ver os invisíveis, aqueles por quem passamos e nem reparamos. E atrevo-me a dizer que esses nem sequer são os difíceis. Os particularmente complicados são aqueles com quem nos cruzamos frequentemente e que escolhemos ignorar, fazer de conta que não vemos, desejar que não existissem na nossa vida, Esses é que são o nosso desafio. Porque exigem uma proatividade que, para além da nossa atenção, apela à nossa vontade, ao esquecermos o ressentimento, e isso não é partir do zero mas do menos qualquer coisa para tentar construir algo de positivo. Neste caso, o eu vejo-te alia-se ao eu escuto-te e isso é já o eu sou contigo. Até o posso ser na discordância profunda, no desentendimento, mas isso é também aprendizagem, é mútuo contributo para o mútuo crescimento, é também "ser com".

20241016

Seguíamos para o aeroporto. A minha filha é coordenadora de uma equipa numa multinacional e volta e meia sou um pai Uber de todos os meus filhos. No caminho falava com ela de algo que me inquietou: na despedida do congresso das escolas católicas os dirigentes estavam em cima do palco. Só homens. Da área do ensino onde, como sabemos, as mulheres estão em larga maioria. A estranheza foi tanta que eu, que normalmente não ligo puto a isso, reparei. Só homens. O que significa uma de duas coisas: ou elas não são competentes para estar lá, ou são impedidas de lá chegar. Não gosto das quotas, não ligo se são homens ou mulheres, parto sempre do princípio que a competência fala mais alto. Sou ingénuo, claro. E partilhei isso com a minha filha. E ela, que nessa mesma semana tinha estado numa operação da Team Building da sua empresa, disse que o mesmo se passava lá: nas chefias superiores, só homens. Daí para baixo, quase só mulheres. Não entendo. Para mim nunca foi importante quem me dirigia, a não ser a sua competência. Não é importante o género, a orientação sexual, a altura, o peso, o nome, a condição... ninguém me merece mais ou menos respeito por causa das suas circunstâncias ou escolhas pessoais. E não tenho qualquer dúvida que é um erro considerar tudo isso um obstáculo para o que quer que seja num clima organizacional (já para não falar do âmbito das relações pessoais). Eu, que fico solenemente irritado com os "portugueses e portuguesas" dos nossos políticos, percebo que as mulheres se possam sentir relegadas para segundo plano quando me deparo com estas coisas. Mas acredito que não será por muito tempo. Nem elas deixam.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...