20160428


Por mais que os bons livros, os bons filmes, a boa música, nos possam ensinar, há coisas que apenas adquirem sentido quando partilhadas.

Desde que me conheço que, provavelmente fruto de uma infância com muitas alturas de convívio forçado comigo mesmo, devoro livros. Toda a espécie de livros. As BDs, por exemplo alicerçaram muito do que é o meu conhecimento de história europeia e americana. Creio até que esta minha identificação da velhice com a sabedoria não vem de qualquer filósofo ou psicólogo mas da importância que, nos livros de BD, os chefes índios tinham para as suas tribos. No meu imaginário (eternamente) infantil, sempre me quis ver um pouco como um chefe índio, com os seus cabelos brancos, o seu cachimbo e o silêncio atento de quem escuta aquele que conhece o solene peso das palavras.

Aos livros seguiram-se os filmes e, consideravelmente mais tarde, a música. Que sempre fora tida por mim como algo de muito privado mas que, particularmente desde Taizé, se foi tornando também muito construção de memória partilhada.

As últimas vezes que visitei a minha avó, que está agora com 95 anos, permitiram-me conhecer peripécias da vida dela quando era nova. Não porque eu tenha particular interesse nesses tempos e nessas vidas, mas porque a sua memória recorda com  muito maior facilidade esses tempos e essas vidas que os nossos tempos e as nossas vidas. É extraordinária a forma como ela fala desses acontecimentos e dessas pessoas com pormenor, relatando nomes e circunstâncias e brincadeiras que em alguns casos apenas fazem sentido para ela porque estão justamente recheados de pormenores que apenas a ela fazem sentido e se nos escapam.

Recordei-me hoje de tudo isto ao ver uma foto de um arco íris. Para mim, que até sou meio daltónico e nunca lhe vi mais que três ou quatro cores consoante a sua intensidade, o arco íris nunca foi a sétima maravilha que me diziam ser. Ok, era giro e tal, mas sempre me pareceu pouco mais que uma infantilidade ligada a uma história de um pote de ouro. No entanto, há dias, numa daquelas partilhas que nos marcam as vidas, o arco íris ganhou um outro sentido, um outro significado, remetendo-me imediatamente para um olhar, uma conversa, que têm um rosto e um nome bem claros e definidos. E nunca mais voltou a ser um mero arco íris!

Lentamente, à medida que a minha vida vai avançando e eu me vou espalhando por aí, os dias vão ganhando novos significados, novas leituras. Uma determinada música de Damien Rice não será nunca mais apenas uma música de Damien Rice, um terraço ao luar nunca será apenas um mero terraço ao luar, um arco íris nunca mais será apenas um arco íris, uma gaivota...

Calculo que daqui a uns anos, quando - espero eu! - receber a visita dos meus netos, também eu estarei a contar peripécias e acontecimentos e aventuras e desventuras com pormenores que não serão entendíveis para ninguém para além de mim próprio. E mencionarei, pormenorizadamente, os olhos e os sorrisos e as lágrimas e as mãos de quem estava comigo em cada um desses momentos, em cada uma dessas vidas partilhadas. Não porque os recorde com saudade. Mas porque continuarão a ser, infinitamente, parte de mim.

Ainda que tudo o mais possa vir a ser esquecido, gosto muito da ideia de recordar para sempre os tantos que me fazem mais eu.

Todos os dias.

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Sentar e conversar. Nem sempre resulta. Aliás, é um processo, um caminho com várias etapas, sendo que apenas resulta no final. Mas até chega...