Nunca mais esqueci o filme Crash (Colisão), de Paul Haggis. Naquele filme não há maus absolutos nem bons imaculados: há pessoas e circunstâncias, há pequenos acontecimentos que vão envolvendo uns e outros, sendo que uns e outros são capazes de coisas boas e más dependendo das respostas que vão conseguindo dar ao que vai sucedendo. Há como que uma cozedura progressiva, um progressivo adormecimento da razão e dos sentidos que, tal como acontece com a rã, mantém a todos indiferentes a uma água que vai sendo, progressivamente, mais quente. Tenho-me lembrado tanto deste filme!
De acordo com a informação que vou conseguindo ter, não encontro grandes culpados nos acontecimentos mais recentes de Lisboa. Encontro medo. Encontro sofrimento. Encontro respostas ao medo e ao sofrimento. Por isso encontro tragédia. A tragédia de uns polícias cansados e a maioria das vezes frustrados face ao que, dia após dia, noite após noite, têm de enfrentar; a tragédia de pessoas remetidas para uma berma, cansados de tanto lutar para chegar a lado nenhum, para se sentirem coisa nenhuma. A tragédia do medo, que perpassa o dia de uns e de outros, um medo em tudo semelhante, que em tudo os une: medo do que possa acontecer aos que os esperam em casa e que uns e outros querem proteger; medo do que possa acontecer a eles próprios, medo da impotência, da irrelevância da sua própria vida.
Nada disto começou esta semana. Nada disto é absolutamente inesperado por nenhum de nós. E estamos, de certeza, a fazer qualquer coisa muito errada, para permitirmos, todos, que um caldo destes vá sendo cozinhado enquanto escolhemos não ver, não agir, não aliviar o sofrimento. De todos. Porque é de sofrimento que se trata. De todos. Sofrimento antes dos acontecimentos, sofrimento durante os acontecimentos, sofrimento depois dos acontecimentos. Um sofrimento que eu poderia aliviar, à medida das minhas possibilidades. Um sofrimento que cada um de eus poderia aliviar, à medida das possibilidades de cada um dos eus. Porque não adianta, agora, vociferar. Não é pela gritaria que chegamos lá. Nem pela massificação. É por aquilo que eu, hoje, aqui e agora, escolho fazer. Para aliviar o sofrimento daquele que está a escassos metros de mim. O resto são desculpas.
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