Adoro escrever. Faz parte daquelas poucas coisas que me são interiores e anteriores e independentes de mim, como se eu fosse apenas o senhorio de entidades que me habitam e que têm vida própria, para a qual a minha vontade conta pouco. Ou quase nada. Escrever é uma paixão e as minhas paixões são muito femininas, muito senhoras do seu nariz, muito autónomas, fazem-me pensar que quem controla sou eu quando sabemos ambos que não é bem isso que se passa. E, como qualquer paixão, é autosuficiente, autoalimenta-se, autoelogia-se, autosatisfaz-se, autobasta-se, e ainda que se envaideça com eventuais comentários alheios, na verdade não precisa deles para nada. Por isso continuo a escrever, por isso continuo a dizer e a fazer asneiras, por isso continuo a parecer infantil e inconsciente e incongruente a quem paira fora da paixão, porque não a entende. E por isso é que preciso do seu velho companheiro de jornada, mais maduro, mais evoluído, menos primário, porventura até mais racional: o amor. A paixão e o amor são como alguns dos meus filhos: têm os mesmos pais, os mesmos valores, as mesmas memórias das mesmas brincadeiras da infância, mas, porque têm personalidades diferentes, fazem coisas diferentes com o que têm dentro. Porque se a paixão é voltada para si própria, o amor esquece-se de si próprio, está atento ao fora de si, alimenta-se fora de si, encontra-se fora de si. Não são duas faces da mesma moeda, são duas moedas, diferentes, para diferentes gastos, para diferentes alimentos da alma. Como se uma valesse para o mercado da sede e outra valesse para o mercado da fome. E eu, que sempre tive mais fome que sede, senti sempre a premência na sede e menor voracidade na fome.
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