Para O Poço

 

“Depois de terem entoado os hinos, saíram para o Monte das Oliveiras. Disse-lhes Jesus: «Todos caireis em escândalo, porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas serão dispersas. Mas, depois de Eu ter ressuscitado, irei à vossa frente para a Galileia». Pedro disse-lhe: «Ainda que todos caiam em escândalo, eu não». Disse-lhe Jesus: «Amen te digo: Tu, hoje, esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás». Mas ele dizia com grande insistência: «Ainda que seja necessário eu morrer contigo, jamais te negarei». E todos diziam o mesmo.” Mc 14, 26-31

 

“Entretanto, estando Pedro em baixo, no pátio, veio uma das jovens servas do sumo-sacerdote e, ao ver Pedro a aquecer-se, fixou nele o olhar e disse-lhe: «Também tu estavas com o Nazareno, com Jesus». Mas ele negou, dizendo: «Não sei, nem entendo o que tu dizes». Foi, então, para fora, para o pátio anterior, e um galo cantou. A jovem serva, ao vê-lo, começou de novo a dizer aos que estavam ali perto: «Este é um deles!». Mas ele de novo negou. Pouco depois, os que estavam ali perto diziam de novo a Pedro: «É verdade que és um deles, pois também és galileu!». Mas ele começou a dizer anátemas e a jurar: «Não conheço esse homem de quem falais». E imediatamente, pela segunda vez, um galo cantou. Pedro lembrou-se, então, daquilo que Jesus lhe dissera: «Antes que um galo cante duas vezes, três vezes me negarás». E irrompeu num pranto.” Mc 14, 66-72

Todos conhecemos bem estas passagens descritas pelos 4 evangelistas: Pedro, que jurara fidelidade até á morte a Jesus, acaba por o negar três vezes, cheio de medo de que lhe fizessem o mesmo que ao Mestre.

Não há assim tantas passagens comuns aos sinópticos e a João, e o facto de este relato ser comum aos quatro evangelistas confere-lhe um atestado de autenticidade, que é reforçado pelo facto de Pedro não sair particularmente bem visto neste relato. Na realidade, é preciso uma humildade muito fora do comum para que alguém se permita ficar na história como aquele que, por cobardia, negou o seu Mestre, o seu Líder, o seu Amigo. Se assim o desejasse, Pedro, como responsável pela Igreja emergente, teria poder suficiente para refazer a história, para argumentar, para dizer “não foi bem assim”, e reescrever para si um outro papel, mais heroico, mais consentâneo com aquele que desejamos todos, uma forma – verdadeira ou não – de ficar bem visto na fotografia. E estes relatos teriam desaparecido. Mas Pedro não o quis.

Uma das coisas que as passagens acima revelam é que Jesus conhece bem quem tem diante de si. Jesus conhecia os corações daqueles que Ele escolhera, sabia das suas virtudes e limitações – não os mandara à cidade arranjar mantimentos para que não perturbassem a conversa com a Samaritana? – sabia da sua generosidade, das suas dúvidas, sabia que não entendiam muitas coisas nem estariam preparados para o que viria a acontecer. E sabia muito bem que Pedro, aquele espalha brasas, por vezes colérico, por vezes temeroso, tinha uma ideia errada de si mesmo: acreditava que podia tudo, que conseguiria fazer e desfazer mundos e fundos à custa da sua coragem, da sua têmpera, de si próprio. Pedro, como se diz agora, vivia cheio de si.

Tenho o pranto de Pedro, depois de negar Jesus, como o momento da sua verdadeira conversão. Na verdade, não me é muito difícil perceber o que lhe passaria pela cabeça naquela altura: a profunda vergonha sentida pela negação do Mestre apenas confirma e reafirma a vergonha de si próprio quando, desnudado pelos acontecimentos, se confronta consigo mesmo. Naquela altura, esse abrir de olhos é extremamente doloroso e devastador: “eu não valho nada, eu não sou digno de ser amado”. É a Paixão de Pedro, o momento em que mergulha na dor profunda, indizível e solitária de quem se sente completamente perdido. No entanto, tal como acontece connosco, é esse bater no fundo que lhe permite libertar-se de si próprio, é a sua Pessach, a sua passagem, a sua libertação, o mergulho nas águas da fé que lhe permitem nascer de novo, esvaziado de si para poder ficar cheio de Amor.

Pedro, no entanto, perde a imagem de si, mas não perde a esperança, que se começa a revestir de fé. Por isso internamente espera, e corre ao primeiro sinal que as mulheres lhe trazem, e acredita, de uma maneira nova, que algo de maravilhoso está para acontecer. Por isso Pedro reconhece Jesus na margem do Tiberíades e, sem poder esperar, se lança ao mar para ir ao Seu encontro. O diálogo que se segue é maravilhoso, é a ressurreição de Pedro:

“Depois de terem comido, disse Jesus a Simão Pedro: «Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?». Disse-lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». Disse-lhe Ele: «Apascenta os meus cordeiros». Disse-lhe de novo, pela segunda vez: «Simão, filho de João, amas-me?». Disse-lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». Disse-lhe Jesus: «Pastoreia as minhas ovelhas». Disse-lhe pela terceira vez: «Simão, filho de João, és meu amigo?». Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter dito pela terceira vez: «És meu amigo?» e disse-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que sou teu amigo!». Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas. Amen, amen te digo: quando eras mais novo, a ti mesmo te vestias e andavas por onde querias; mas, quando envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não queres». E, tendo dito isto, disse-lhe: «Segue-me».” (Jo, 21, 15-19)

Podemos, com facilidade, perceber a diferença que ecoa na voz de Pedro: o voluntarismo irrefletido deu agora lugar ao comedimento, à simplicidade, à humildade tão profunda que Pedro é incapaz de dizer a Jesus, àquele que sabe tudo, que o conhece intimamente, que O ama. É justamente esse despojamento de Pedro, anteriormente tão familiar a Jesus quanto desconhecido do próprio, que tem como consequência o mandamento de Jesus: “apascenta as minhas ovelhas”. Um despojamento que fará de Pedro o servidor que será levado para onde não quer até ao momento em que, envelhecido, será vestido por outro, um dos paradigmas atuais da fragilidade.

Gosto muito de São Pedro. Gosto do seu voluntarismo, do seu coração, da força que emana das suas palavras e da sua capacidade de entrega. Sempre me inquietou o facto de Jesus ter confiado a Igreja a Pedro e não a João. As passagens bíblicas que estão neste texto ajudaram-me a tentar perceber o motivo: a Pessach de Pedro, a sua passagem, a sua Páscoa é a nossa Páscoa. Pedro persistia em apresentar-se diante de Jesus ainda coberto das suas convicções, porventura tentando esconder-se de si próprio, evidenciando a sua imagem, esquecendo que Ele conhece o nosso íntimo e que nos ama assim mesmo, exatamente como somos. Pedro, no fundo, não confiava no Amor radical do Pai, tal como nós não confiamos. Enquanto formos cheios de nós, enquanto confiarmos nos nossos recursos, nas nossas capacidades, enquanto não nos esvaziarmos de nós próprios, dessa imagem egocentrista que, hoje, é tão socialmente cultivada, não daremos lugar a Jesus. Estou convencido que este é um dos motivos por que somos cada vez menos na Igreja: ainda estamos na fase da negação.

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