20230327

20230327

Ainda que não o desejemos, ainda que o recusemos, ainda que não tenhamos disso consciência, a nossa vida configura-se com a vida de Jesus. Ou melhor, é a Sua vida que se configura com a nossa própria vida. Talvez por isso, o período da Quaresma me seja tão significativo e a Via Sacra seja, provavelmente, o meu ritual preferido. Sendo sempre doloroso, não me é nada difícil reconhecer-me naquele caminho. Também eu caí bem mais que uma vez, também eu tive (mais que) um cireneu, também eu tive quem, recorrentemente, me limpasse o rosto, e também eu, depois de chorar baba e ranho e ter duvidado de tudo e de todos na maior das solidões (sempre auto-infligida e auto-imposta), acabei por ressuscitar. Por isso, nada na Via Sacra me é estranho. E nada em Jesus me é estranho. A não ser a responsabilidade, que é sempre minha, exclusivamente minha, feita à custa de escassa racionalidade e de um certo embarcar na fantasia ignorando a realidade do chão que piso. Não me recordo de alguma vez ter podido sacudir o pó da responsabilidade de cada vez que mergulhei nos meus infernos. Estivesse eu mais atento, estivesse eu menos convencido da minha razão, estivesse eu mais aberto à escuta dos que me amam, e ter-me-ia apercebido, primeiro, que era amado, e, depois, que nos momentos escuros nada há de melhor, mais sensato e mais corajoso que abandonar-me aos que me amam. Tivesse eu a capacidade de fazer isso e teria evitado muita dor, sobretudo aos que, como Maria e João, nunca arredaram pé de junto da minha cruz.

Hoje, porque o conversamos no caminho, rezei pelo sr Mário. Na verdade não o conhecia bem. Vira-o meia dúzia de vezes, sem lhe prestar grande atenção, enquanto tratava do jardim lá de casa.  Eu tenho impregnada na vida esta coisa dos outros serem apenas outros e, enquanto não faço o esforço consciente de passarem a ser meus, são sempre outros. E a verdade é que o Sr Mário nunca foi dos meus. Por isso não posso dizer que tenha sentido grande comoção quando soube que se tinha suicidado. Mas hoje falamos disso e rezei por ele. Sobretudo pela família dele. Há muitos anos, um bom amigo morreu. Num determinado período tinha sido fundamental na minha vida. Foi com ele que aprendi a cantar e a tocar em eucaristias e partilhamos deliciosas memórias de retiros e encontros e brincadeiras parvas que se têm apenas com aqueles com quem nos sentimos nós próprios, sem qualquer receio. Uma amizade que se estendeu com facilidade aos seus pais e irmãos, que têm, ainda, hoje, um lugar especial cá por dentro. Quando morreu, correu à boca fechada que se teria suicidado. Recordo-me do tremendo sentimento de culpa que se abateu sobre mim. Na altura, a vida já nos tinha enviado por caminhos diferentes e só nos víamos ocasionalmente e sempre de corrida. Já não sentávamos e já não conversávamos. E eu já não sentia essa disponibilidade interior para o fazer. Recordo-me que, quando soube da sua morte, senti pela primeira vez uma enorme necessidade de estar num velório e num funeral, de o acompanhar e à sua família. E, mais tarde, senti necessidade de pedir perdão aos seus pais e irmãos por não ter estado lá quando teria sido necessário.

Não haverá maior profundeza do inferno que o desespero que leva ao suicídio. É necessária uma solidão, uma desesperança, uma escuridão, que apenas conseguimos imaginar. E uma total ausência de sentido. Não creio que seja um ato de egoísmo, mas de libertação, enraizado no erro de pensar que os que nos amam ficarão melhor sem nós. Nunca ficam. Sobretudo se nos amam verdadeiramente.

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