20230102


Os Dias de Reflexão que este ano orientei tinham um verbo forte: ver. Partíamos do extraordinário filme O Circo das Borboletas, que pode ser facilmente visto no youtube, encetando depois um diálogo em que abordávamos cada uma das personagens, tendo em vista aquela que é a personagem principal: Mendez. Na condução desse diálogo, a determinada altura fazia duas perguntas decisivas. A primeira era quem seria a personagem mais diferente de todas elas. Os mais apressados respondiam que era o Will, mas imediatamente percebiam a armadilha: estavam a relevar o imediato: a aparência física. A pergunta mais difícil, no entanto, vinha a seguir, quando lhes pedia um verbo para o que tínhamos acabado de ver e discutir. E o verbo é Ver "se pudesses ver o que existe sob as cinzas de cada um..."

Este blogue apela à minha maneira diferente de ver. Não é melhor nem pior, é muitas vezes diferente. E isso tem acarretado alguns dissabores na minha vida. Porque o meu olhar dirige-se instintivamente àquilo que existe para além da evidência. Digo muitas vezes que "sou muito olhos", isto é, a característica física que mais me interessa nas pessoas é sempre a profundidade do seu olhar. Mas isto faz com que, por exemplo, não faça a mínima ideia de que cor são os olhos das pessoas. E isso confunde muito as pessoas, levando-as a pensar que sou um tretas. Com a vida acontece-me o mesmo: reparo em pormenores que não interessam nem ao Menino Jesus e outros que são mais comuns - e porventura muitíssimo mais importantes, sobretudo para os próprios  - ainda que, eventualmente, repare neles, são facilmente esquecidos. Para mim, são meras circunstâncias que, tendo o seu peso, não constituem o fundamento de cada um, que me parece sempre muito mais interessante conhecer.

Em ambos os avatares, o que mais perenemente me ficou - para além da técnica - foi justamente o "eu vejo-te". É uma forma bonita de dizer a alguém o lugar que ocupa na vida: eu vejo-te, logo, tu és para mim. E poder ser, exatamente como se é, para alguém e ainda por cima ser gostado por isso, é um privilégio nem sempre devidamente apreciado.

Educar o olhar é absolutamente fundamental. Ver, com olhos de ver, ver com efeitos transformadores, ver para além do que se vê, ver o que ainda não é senão em potência de ser, é um dom. E uma responsabilidade. O que faço com o que vejo? O que faço com aqueles que vejo? O que faço ver aos próprios e aos outros?

Não espanta que o Papa Francisco apele tanto à nossa capacidade de ver. Porque isso retira-lhes o cinzentismo que faz com que as confundamos com a paisagem, dá-lhes cor, dá-lhes existência e, passando a existirem para nós, forçam-nos a agir, a considerá-las seres humanos. 

Não foi justamente isso o que fez Jesus com os que habitavam as margens?

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