Numa das minhas atividades dos DRs uma das questões que um jogo colocava era "para mim, amar é...". Era a questão que eles mais temiam porque, por um lado, nunca tinham pensado a sério nisso e, por outro, se o tivessem pensado, ficavam algo inibidos de o dizer em voz alta. Naturalmente, as questões que iam sendo sorteadas não eram apenas colocadas aos alunos, eram também colocadas a mim próprio, que sempre gostei mais do processo de abertura que envolve as perguntas que do fechamento aparente das respostas. E esta, inevitavelmente, é daquelas que mais me inquietam desde sempre.
Eu dizia aos miúdos que amar tem muito pouco a haver com gostar, mesmo o gostar muito. E depois explicava-lhes que, nas nossas atividades juntos dos sem-abrigo (não gosto do eufemismo dos "amigos de rua"), ou do Raiz, não precisamos de gostar deles para os amarmos. Sim, o que fazemos é por amor, ainda que não os conheçamos e, mais importante ainda, ainda que, conhecendo-os, não gostemos nada deles e das suas escolhas. Porque amar é de outro campeonato.
Provavelmente, o verbo que melhor rima com amar é cuidar. Cuidar é um verbo ativo, efetivo, feito de proximidade interior, de genuína preocupação, de incómodo provocado. Sim, nós podemos nem conhecer bem aqueles de quem cuidamos ou, conhecendo-os, podemos até nem gostar particularmente deles, mas porque amamos, há algo que não nos permite ficar completos, inteiros, se não fizermos algo de concreto para, pelo menos, aliviar a sua situação. Cuidar também raramente tem a haver com proximidade física. Os meus filhos já não vivem todos nas minhas proximidades e ainda assim são cuidados, são parte inalienável do meu quotidiano. Eu próprio nunca fui o tipo de filho ou de irmão que está em permanente contacto com os seus, mas a vida já provou à saciedade que nos cuidamos mutuamente sem questionamentos ou hesitações. E com os amigos, aqueles que montaram tenda cá por dentro, há também esse mútuo cuidado, apesar de a vida se ter encarregado de nos separar fisicamente.
Mas este cuidar não abona a meu favor. Na verdade, é-me quase sempre muito mais natural a ideia de amar que a necessidade de cuidar. E perco-me algumas vezes nessa ideia, bonita, linda, que me faz permanecer algumas vezes lá em cima, numa realidade virtual, que me impede de olhar com olhos de ver a realidade do que se passa à minha volta e daqueles que amo. Invariavelmente, necessito de um chamamento à realidade, a por os pés no chão, a tornar mais efetivo esse amor, a cuidar, e esse desinstalar-me das nuvens quase nunca é feito sem alguma dor. E sem imenso custo. No meu percurso, houve um tempo em que a esse acordar de espanto para o que se passa realmente à minha volta se sucedia um terrível sentimento de culpa. No entanto, à medida que vou vivendo, vou percebendo que essa culpa, para além de inútil, é errada. Por isso, agora, prefiro agradecer. A todos aqueles que, assim ou assado, motivados por isto ou por aquilo, me forçam a ver aquilo que sozinho não consigo ver. Ainda que doa, ainda que proteste, ainda que resista à desinstalação de mim próprio. É que, com eles, por causa deles, sou melhor pessoa.
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