Como se mede, hoje a distância? Quão longe é, hoje, o longe?
I
Há já algum tempo que vários dos meus filhos vivem e moram longe de casa. Daquela que era a sua casa. De entre eles, alguns ainda vivem no país e outros – uma das raparigas – não vive sequer no mesmo continente. Entre nós, falamos quase todos os dias, certamente todas as semanas, e acompanhamos os seus estados de espírito com uma frequência que, provavelmente, não acontecia quando eles estavam à mão de semear. Não admira: todos temos esta coisa de quase desprezo pelo corriqueiro que sabemos que amanhã se repete com facilidade. Na nossa relação familiar à distância, as redes sociais são uma verdadeira bênção: conhecemos as suas casas como se já lá tivéssemos estado, temos conversas em família com todos ao mesmo tempo, combinamos prendas, por vezes cozinhamos juntos, e até a árvore do último Natal foi montada a partir de bitaites enviados pelo WhatsApp. Excetuando aquelas alturas em que sentimos que eles estão com dificuldades – e que nos dão ganas de nos metermos no primeiro avião para lhes dar colo – a distância física não equivale, de todo, à distância afetiva. Estando longe, estão perto. Na realidade eles não estão fora, estão dentro, bem dentro, e o que nos separa é nada, absolutamente nada.
II
Nos Açores, no topo da montanha, conseguia ver toda a ilha. E todo o mar à minha volta. E a única coisa que conseguia pensar era: onde vai esta gente toda ao domingo? Pela primeira vez vi-me confrontado com um sítio demasiado pequeno para os meus anseios. Nunca antes me tinha acontecido esta sensação de claustrofobia em céu aberto. Mas já me tem acontecido, depois desse episódio. Várias vezes! Hoje em dia ninguém fica deste lado do mundo na viagem de lua de mel, as férias passam-se nas Maldivas, ou em Cabo Verde, ou em qualquer outro lugar que, há dez anos, nos exigiria anos de poupanças e planeamento. A sensação que tenho é que a Terra está a ficar demasiado pequena. Para onde iremos daqui a vinte anos? O que será longe, nessa altura? Por isso os ricos querem viajar agora para o espaço: a última reserva exclusiva dos endinheirados.
III
A distância nunca foi tão iludida. E nunca foi tão ilusória. Todos conhecemos pessoas que, morando no mesmo espaço, habitam noutros lugares, onde se sentem queridos, onde se sabem entendidos, aceites sem subterfúgios, sem discussões nem exigências outras que não aquelas que estão dispostas a conceder. Neste, como noutros tempos, o nosso mundo afetivo é composto por aqueles que conhecemos e a quem nos damos a conhecer. Mas enquanto noutros tempos esses eram, fundamentalmente, os que gravitavam no mesmo espaço físico, agora o espaço é outro. Não o fora de nós, nem o de dentro, mas o algures, o não-sei-bem-onde, no qual apenas entra quem permitimos que nos habite, com ou sem tenda montada, sem pagar renda, mas despejo programado. São lugares precários, estes, onde se habita o efémero e, inevitavelmente, o ilusório. São lugares onde rapidamente se deixa de estar, tal a facilidade com que se parte para um outro lugar, que o virtual exige armas, mas não bagagens. Também por isso há, hoje, uma evitabilidade da exigência, por contraposição à antiga inevitabilidade do encontro, quando não tínhamos outra alternativa senão habitar a mesma casa, a mesma aldeia, a mesma vizinhança, e era mais difícil evitarmos o confronto com os outros... e connosco próprios. E, passito a passito, como na canção, vamos ficando distraidamente longe...
IIII
Quando Z chegou ao Espaço, bastou o seu olhar para sabermos logo qual deles chegara. Z é um miúdo com aquelas experiências que, quando chegam, chegam sempre demasiado cedo. Nos seus oito anos já defendeu a mãe e a irmã da porrada do pai, e apanhou por tabela; já viveu, escondido, numa instituição, já viu refeita a sua família com um – agora sim - pai, e agora, infelizmente, guarda tudo no seu coração. Infelizmente, porque nem sempre são as coisas boas o que se guarda no coração, e o Z não as viveu ainda o suficiente para poder substituir as que o habitam. Inusitadamente doce, terno, sobretudo para um miúdo do bairro, o Z traz-me sempre à memória o Dr Jekyll e o Mr Hyde, do Stevenson, só que desta vez não o leio em livro, mas nos seus olhos, ora suplicantes, ora furiosos, prontos a explodir. Quando nos chegou não sabíamos o que fazer, e fazíamos tudo mal. Mas fomos aprendendo: ficamos perto, atentos, deixamos que o Hulk salte cá para fora e depois sentamos, escutamos, mimamos, recordando-lhe ao ouvido o quanto gostamos dele, e que está seguro connosco. E sabemos que assim que a lágrima cai, suavemente, é sempre seguida de um abraço do tamanho do mundo, que nos restitui ao que a vida deveria ser. E o Z a si próprio, cada vez mais perto do que sonha ser.
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