Há imensa irracionalidade nestes temos que vivemos. Venho à net e, no mesmo minuto, deparo-me com o sol e a escuridão total e absoluta. Por um lado, as imensas fotos de praias e férias e alegria e dolce fare niente; e no separador à direita relatos de uma dor e crueldade incomensuráveis, inimagináveis para quem nunca soube o que é viver em estado de guerra. Num minuto, preocupo-me com as coisas comezinhas, insignificantes, risíveis, do meu quotidiano - para mais em férias - e, nesse mesmo minuto, desvio os sentidos do terror que entra por mim dentro através das redes sociais e dos canais de comunicação. Entre um lugar e outro habito eu. Habitamos nós. Nas nossas conversas no jantar de ontem alterávamos de tema e de expressão facial consoante o tema e de estado de espírito dependendo do que discutíamos. Ao riso solto e franco sucedia a apreensão dura e calada. E falamos disso. Como é possível vivermos assim?
Como é possível?
É possível. Tem que ser possível.
Este não é, aliás, um exclusivo nem destes tempos nem da guerra nem da vida moderna. Esta foi sempre a nossa forma de ser. Testemunhar a dor, condoer-se, e avançar apesar da dor. E não é egoísmo, é instinto de sobrevivência, é necessidade de cuidar daqueles que cuidamos, é a necessidade premente de não nos deixarmos tolher pelo medo, agravando as consequências do nosso sentimento de impotência.
Recordo muitas vezes o Ir. António, de Quelimane. Quando lá chegamos e perguntamos o que queria que fizéssemos na sua casa de acolhimento, ele respondeu. "Brinquem. E riam. Os meninos precisam disso, que brinquem e riam com eles. Quando a minha família me vem visitar eles chegam junto dos meninos e choram perante a miséria que vêem. E eu ralho-lhes. Vai chorar para a tua terra. Aqui eles têm choro que chegue."
Há uma parte racional em mim que me diz que é assim que tem que ser. E depois há a parte visceral em mim, que me remói as entranhas e que tem que me impelir a fazer alguma coisa. E, por isso, a ter que iludir a impotência da ação lá longe com a ação com todos e em todos os que me rodeiam. Para que o acontece lá não aconteça cá. É pouco. Imensamente pouco que, sendo uma expressão que se contradiz, espelha bem a contradição e a impotência que por vezes me habita.
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