20210513

 

Ultimamente, tenho andado à volta das memórias. Não tanto as que temos, as que os outros nos deixam, aquelas que nos marcam e das quais nos recordamos não sem emoção, uma emoção que é diretamente proporcional à idade e ao tempo que passa. Eu diria que essas memórias nem são da nossa responsabilidade: basta termos as melhores das companhias, aquelas que permitem que baixemos as defesas e elas entram, livremente, sem convite, ocupando o seu espaço, algumas, as mais significativas, até armando tenda para se deixarem ficar indefinidamente. Volta e meia, a propósito de um qualquer acontecimento, de um qualquer cheiro, de uma música que mal ouvimos na rádio, e aí estão elas, criteriosamente selecionadas, espantosamente criteriosas quando à recordação do imenso que vivemos. E têm o desplante de assomar à nossa face sob a forma de inexplicável sorriso sem se preocuparem sequer se será essa a altura mais conveniente para o fazer. E os outros vêem-nos sorrir feitos estúpidos, ou a tristeza a tomar conta de nós, perguntando-se a si próprios o que fizeram para ficarmos assim. 

Ultimamente, tenho andado à volta das memórias. As que deixamos, as que depositamos nos outros, conquistada a confiança para entrar pela sua alma adentro sem pedir licença ou sacudir o pó na soleira da porta. Estas são as memórias que estão sob nossa responsabilidade, são como rebuçados cujo sabor nos está vedado e apenas podemos dar a conhecer aos outros, tomando-lhes o gosto por interposta e transbordada partilha. São as nossas marcas, as que deixamos, aquelas com as quais contaminamos as vidas com que nos cruzamos. São o eu nos outros.  O problema é que por vezes o fazemos com tal sobranceria e descuido que o que damos a provar é amargo, azedo, que em nada corresponde ao legado do que somos e muito menos do que queremos ser. Um descuido tão mais frequente quanto maior a intimidade, que frequentemente confundimos com perenidade, quando deveria ser precisamente o oposto.

Debruço-me frequentemente sobre esse meu legado. Na realidade, será a única coisa minha que permanecerá para além de mim.


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