Mt 17 1Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e o seu irmão João, e fê-los subir, a sós, a um alto monte. 2Transfigurou-se então diante deles: o seu rosto ficou brilhante como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. 3E eis que lhes apareceram Moisés e Elias a conversar com Ele. 4Em resposta, Pedro disse a Jesus: «Senhor, que bom é nós estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias».
Nós somos muito Pedro!
Façamos a contextualização desta passagem bíblica, que escutamos na eucaristia há pouco tempo. No capítulo anterior (Mt 16) podemos ler o que se passara seis dias antes deste grandioso acontecimento: Jesus perguntara quem os apóstolos dizem que Ele é. Pedro, sempre com o coração perto da boca, facilmente diz que Jesus é o Messias. No entanto, assim que Jesus explica qual o verdadeiro sentido de ser o Cristo, a dor, o sacrifício, o serviço, a necessidade e a vontade de estar entre os últimos, Pedro protesta. E recebe uma reprimenda do próprio Jesus: «Vai para trás de mim, Satanás! És para mim motivo de escândalo, porque não tens em mente as coisas de Deus, mas as dos homens» (Mt 16, 23). Não espanta, por isso, que passados seis dias deste episódio Pedro, perante a maravilha da Luz, tenha sugerido a Jesus ficar no conforto dos seus e a não assumir a cruz. Para quê ir para o mundo, se o mundo o recusaria?
Nós, Igreja, somos tão Pedro! Adoramos o Jesus, mas custa-nos o Cristo. Adoramos o brilho, a festa, a grandiosidade que nos coloca a cara no chão, tecemos loas à sabedoria profunda de Jesus, à forma como fala para as pessoas e restaura a sua dignidade, e facilmente nos deixamos contagiar por essa alegria profunda e transformadora que nos faz sentir que somos tão amados, cuidados e restaurados quanto a mulher pecadora e tão dignos como Zaqueu. E bradamos ao mundo, felizes, entusiasmados, e ensinamos na catequese como Jesus é bom e como é o modelo que teremos de adotar se quisermos um mundo melhor ao som de aleluias e cânticos de alegria. Quando ao Cristo, ao sofrimento, à dor, ao caminho da cruz que é fundamental para que haja aleluias que possam ser cantados, esse quase que destinamos à clandestinidade, quase que escondemos, porque a dor não cativa ninguém e os sinais dos tempos vão no sentido oposto.
Sabemos que esse é, sobretudo agora, o pulsar do mundo. Basta estarmos minimamente atentos ao que diz o Papa Francisco para o confirmarmos: o mundo foge da dor. E nós com ele. Refiro-me, por exemplo, ao esforço hercúleo – e vão - de pouparmos os nossos filhos às agruras da vida. Se, quando comparada com a dos nossos pais, a vida nos foi favorável, desunhamo-nos para que a dos nossos filhos seja muito melhor que a nossa. Apresentamos-lhes as luzes e escondemos as sombras. E, reverso da medalha, eles têm menor capacidade de lidar com as adversidades que a vida, inevitavelmente, nos e lhes coloca. Habituados a ter tudo aqui e agora, vivem mergulhados na cultura do imediato que o Papa Francisco tantas vezes refere e cuja responsabilidade apenas pode ser nossa. Quisemos aliviar tanto a carga negativa que às tantas falseamos a verdade da vida. E a verdade da vida encarrega-se, inevitavelmente, de vir ter connosco.
Era essa a verdade que, para Pedro, se afigurava intolerável! Como é que o seu Mestre, aquele homem bom e sábio, o Messias, poderia humilhar-se a esse ponto? (Sim, podemos imaginar aquela nossa voz egocêntrica por nós silenciada, mas sempre presente: se Ele vai ser humilhado, eu serei com Ele. Foi por isto que deixei a minha família?). Na verdade, Pedro, como nós demasiadas vezes, preferia a meia verdade. E não era difícil: bastava ignorar os que tinham ficado no sopé do monte, desviar um pouco o olhar focando-o apenas em Elias e Moisés e na luz grandiosa que vinha de Jesus, que Pedro tanto amava. Não havia qualquer maldade nisto: apenas o desejo de poupar o seu amigo e Mestre à dor. Que mal tinha? A resposta estava implícita na recomendação seguinte de Jesus: “Não faleis a ninguém desta visão, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos”.
A Páscoa de Jesus ensina-nos a imperatividade do todo. Jesus não se entregou um bocadinho, Jesus não amou um bocadinho, Jesus não sofreu um bocadinho nem disse um bocadinho da verdade diante do Sinédrio e de Pilatos. Jesus não perdoou um bocadinho do bom ladrão. Jesus não ressuscitou um bocadinho. O que a Páscoa de Jesus nos ensina é que ou nos entregamos todos, inteiros, com as nossas particularidades boas e más, com as nossas qualidades e defeitos, com os nossos dons e pecados, ou não seremos restaurados. E que é fundamental que este seja um movimento absolutamente constante na nossa participação na Igreja de Cristo. O que nos pode perdoar Cristo no Sacramento da Reconciliação se escondemos o nosso pecado mais profundo e doloroso? E a quem o confiamos, se não o fizermos a Cristo? Não ficamos nós com esse peso, na solidão da nossa consciência, no mais profundo da nossa interioridade, se não o entregamos a Cristo? Não é na nossa enorme fragilidade, na nossa maior vergonha, na nossa dor mais imensa, que damos lugar ao Amor do Pai? Ou teremos nós a ilusão que o Pai não nos conhece e que, à imagem do Éden, nos podemos esconder quando o Pai vem ao nosso encontro?
Não poderia esta passagem bíblica ser mais atual: é quando a nossa vergonha e a nossa dor é maior que mais precisamos de a assumir na sua totalidade para que a possamos confiar toda ao Amor do Pai. Em Igreja não pode haver meias verdades.
Para a Igreja que somos, é imperioso fazermos, todos, batizados, qualquer que seja a nossa circunstância de serviço, esta reflexão conjunta. Sem desviarmos o olhar dos que estão no sopé do monte. Sem desviarmos o olhar de todos aqueles que sofreram os horrores dos abusos por parte daqueles que tinham a mais nobre missão de apresentarem um Deus que é Amor. Sem varrermos para debaixo do tapete, sem atitudes titubeantes, sem desvalorizações ou tentativas de menorização daqueles a quem devíamos ter protegido. A Igreja de Jesus Cristo ou se alicerça na verdade - sobretudo quando, como é o caso, a verdade implica uma dor profunda e imensa acompanhada de imensa e profunda vergonha – ou estará a ser infiel ao próprio Cristo.
E é imperioso que nós, leigos, sejamos escutados. Somos também nós – juntamente com imensos presbíteros e homens e mulheres consagrados - quem está a fazer a preparação da JMJ junto dos mais novos, somos nós quem dormirá com eles no chão durante essa semana, somos nós quem com eles lida todos os dias, é connosco que eles conversam, com quem partilham as suas dúvidas e, sobretudo as suas dificuldades em se afirmarem católicos diante dos amigos e colegas e uma sociedade global a quem demos o pretexto ideal para nos apontar o dedo. Somos nós quem defendemos, todos os dias, a Igreja que amamos e de que fazemos parte e batalhamos para que eles sintam que, apesar de tudo, vale a pena ser Igreja. Não nos colocamos de fora na assunção das responsabilidades que, porque somos Igreja, são também nossas, mas não nos coloque a hierarquia de fora, atribuindo-nos um atestado de menoridade que é desatualizado, inadequado e profundamente injusto. Precisamos de confiar nos nossos bispos. Por isso, precisamos que os nossos bispos nos apresentem a verdade, toda a verdade, nos ajudem a enfrentá-la, para a podermos confiar na totalidade a Cristo. Se não o fizermos, mais que estarmos a dar um sinal errado à sociedade, estaremos a trair tudo aquilo que Jesus nos ensinou e fez por nós. Também a Sua cruz foi motivo de escândalo, mas isso não O impediu de se entregar todo até ao fim do princípio.
Façamo-lo nós também. O Senhor é o nosso Pastor, que haveremos nós de temer? Mesmo que andemos por vales tenebrosos não temeremos mal algum porque Tu, Senhor, estás connosco!
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