20160527
Esta semana tive uma reunião onde falava do que faço. Era uma reunião de trabalho, embora chamar trabalho a um encontro de amigos que procuram, juntos, a melhor maneira de levar Deus aos outros, soe ainda demasiado estranho para mim. E falávamos justamente acerca disso, de como pessoas que fazem o que nós fazemos têm que estar sempre on, nunca desligam, porque não é possível desligar Deus da vida nem a vida de Deus.
Desde há muitos anos que não há nada que veja, sinta ou faça que não tenha o levar Deus aos outros como pano de fundo. Um filme, uma canção, um texto, uma postagem no facebook, tudo tem para mim uma leitura feita a partir do olhar da fé, que pode ser concordante ou contestatária, declara ou inerente, mas que pode e deve ser partilhada. Não me considero nada prosiletista, não comungo nada da ideia que apenas eu marcho com o passo certo, não tenho nada a convicção que os outros estão errados nas suas escolhas de caminhos diferentes dos meus. Mas também, em contrapartida, não me peçam para me esconder e à minha fé porque isso significa que eu tenha que me esconder, e não tenho a mínima disposição para o fazer.
Coisa bem distinta é, no entanto, aspirar sequer a ser paisagem de Deus. Só se for na medida de Zaqueu, do irmão mais velho do Filho Pródigo ou da mulher que esteve prestes a ser apedrejada. Só se for na medida em que confio absolutamente que o meu Deus me permite recomeçar sempre. De peito aberto e cabeça levantada.
20160517
Por esta altura do ano, nas minhas caminhadas matinais, passo todos os dias por santiagueiros. E mordo-me de inveja. Vê-los com as suas mochilas, o seu passo certo, o seu olhar, apreciador da beleza envolvente, mas determinado, leva-me a ansiar pegar na minha própria mochila e partir. Em boa verdade, Santiago é apenas um pretexto: não lhe tenho especial devoção, ou à Senhora de Fátima, ou a qualquer outro santuário. Vou acreditando cada vez mais, que é o caminho o que verdadeiramente importa. O exterior e o interior. E, fundamentalmente, o comum.
Se não tenho particular devoção a santuários, o mesmo não se passa em relação às pessoas que me acompanham na jornada.
Ontem, a propósito do Pentecostes, vagueava pela melhor definição de Espírito Santo que conheço: numa relação de amor existem sempre três entidades diferentes: o que ama, o que é amado e o amor que flui entre eles. Esse amor é o Espírito Santo.
Não acredito num Deus do Livro. Acredito num Deus das pessoas. O Livro é muito importante, a Instituição é muito importante, a Hierarquia é muito importante, mas tudo isso decorre das nossas próprias limitações humanas e da nossa própria necessidade de nos sentirmos constantemente recordados do que é verdadeiramente importante. Fossemos perfeitos como O Pai É Perfeito e não sentiríamos necessidade de Livro, Instituição ou Hierarquia. As nossas relações, as nossas vidas, os nossos pensamentos, seriam pautados definitivamente pelo Amor, sem qualquer outra regra que não amar muito. Mas não somos perfeitos. Temos laivos de perfeição, momentos, breves, fugazes, intensos, profundos, alternados com imensas coisas que detestamos em nós próprios mas com as quais temos que lidar e que têm o condão de nos colocar os pés na terra.
É a caminhar que me sinto sempre mais perto da perfeição. Qualquer que seja a forma de caminhar. Tanto pode ser de mochila às costas, com o olhar num qualquer horizonte, como até pode ser na mesa da cozinha lá de casa, no meio da algazarra de uma das nossas refeições. O importante é este sentir-me a caminho, sentir que falta ainda algo para chegar, que falta ainda algo que caminhar e ir tentando apreciar a paisagem nos entretantos. Louvando a Deus pelo caminho e, sobretudo, por quem me dá o enorme privilégio de me deixar caminhar junto de si.
20160507
Não dou pessoa de viver do passado. Ou de saudosismos. o "naquele tempo..." apresenta-se-me sempre recolorido, refeito, cheio de coisas (inconscientemente?) varridas para debaixo do tapete e que dão a ilusão de uma perfeição na verdade nunca sentida. Até porque, a utilizar o naqueletempismo, em cada altura estávamos demasiado saudosos do que se passava "naquele tempo..."
Mas sou pessoa para gostar da história. Qualquer que seja a história, qualquer que seja o percurso, qualquer que seja a memória. Mesmo a mais dolorosa. E de não a renegar. Se quem vive de passado é museu, como li algures, também é verdade que não renascemos a cada dia, a cada hora, a cada momento. E seria profundamente imprudente e estúpido não sabermos ler o que nos vai acontecendo. Nem acredito que a vida seja possível de outra maneira.
Hoje entretive-me a revisitar. Pessoas e momentos e vidas que se me afiguram tão longínquas que tenho alguma dificuldade em ter como minhas. Não uma nem duas mas muitas vidas passadas onde vejo eus tão diferentes de mim que mal me reconheço neles. Doces vidas, doces memórias, alegres na sua maior parte porque quando não estou bem não me coloco em situação de ser registado. Muito menos por câmara alheia. E alegrias sempre exacerbadas, sempre muito vividas, muito gritadas, muito cantadas e dançadas e apalhaçadas. Que espelham bem que eu não sei fazer as coisas pela metade.
Muito menos sei sentir pela metade.
Com o imenso que tudo isso implica.
20160504
Não acredito em desapegos. De pessoas. Acredito que nos podemos desligar de objetos, de coisas, que têm uma história na nossa história, que nos transportam a lugares e tempos e dias e noites e nos recordam conversas e caminhos e sorrisos e dores, mas mesmo aí com algum custo. Eu próprio tenho lá em casa a minha primeira guitarra, todinha empenada, que mais não faz que ocupar espaço na sala, que mais não faz que ocupar espaço bem dentro de mim. Olho para ela e recordo festas e rodas e noites à beira mar e miúdas embevecidas comigo ainda mais embevecido com o seu embevecimento apenas porque lhes estava a cantar qualquer canção fatela, e recordo retiros e orações e eucaristias e janeiras com os dedos enregelados e a alma quente. Olho para ela e recordo imediatamente o Paulo e a Carmem e o Lino, as horas que passamos juntos a cantar cheios de vida e recordo que nunca mais nos será possível voltarmos a estar juntos a cantar mas naquela guitarra está também alguma da sua presença e da sua vida.
Não acredito em desapegos. De pessoas. Acredito que porventura haverá alturas em que desejemos nunca ter conhecido - nunca tive! - nunca ter acontecido - nunca tive! - ter decidido outra coisa qualquer - já tive algumas vezes, mas nunca por causa de pessoas! - em vez de nos ligarmos e deixarmos ligar a alguém. Mas mesmo aí, mesmo nesse caso, acredito que devemos viver quando é de viver, que devemos enlutar quando é de enlutar, mas que devemos dar graças pelo imenso que sentimos e nos transformamos e nos construímos e nos descobrimos apenas porque no deixamos tocar por alguém. Que a vida seria completamente menor sem alguém parece-me uma daquelas verdades lapalicianas que não entendo como pode não ser visto ou entendido por alguns.
Mas isso sou eu, que cheguei aqui, bem ou mal - umas vezes bem outras bem mal - a dar graças pelo caminho percorrido e, fundamentalmente, pela companhia do caminho percorrido.
Não. Não acredito em desapegos. De pessoas. Voluntários ou não. Impostos ou não. Muito menos a pedido. Que apenas t~em a virtude de engrandecer o apego.
20160503
Desprendimentos. Despedidas. Perdas. Dor. Parece que os meus últimos tempos estão de alguma forma ligados a isto. Ontem foi o Lino. Recebera com choque a notícia da sua doença, algures em Novembro. Acumulava-se com outro choque, o do acidente do Jorge, e a sua conjugação faz-me mossa: e se fosse eu? É uma viragem egoísta, eu sei, mas é o que sempre me acontece com tudo o que acontece aos outros: e se fosse eu?
Na semana passada pediram-me para fazer um brinde a recém casados. Quando me estavam a dar a deixa disseram algo como "que seja para sempre". O meu brinde foi simples: "Eu não acredito em casamentos para sempre. Acredito em casamentos de todos os dias. E é a soma de todos os dias que, com sorte e muito trabalho, poderá dar origem ao "para sempre".
Quando fiz meu o que aconteceu ao Jorge e ao Lino coloquei algumas coisas em causa. Que eram as minhas coisas, que eram o meu tudo. E abanei. Não apenas a mim, mas abanei. Tive que abanar, que sacudir, que reavaliar e fazer reavaliar, que acordar e fazer acordar, redefinir e fazer redefinir. E não há acordar sem sentimento de perda, quanto mais não seja do torpor em que às tantas nos descobrimos, em que viver pouco mais é que a mera sucessão dos dias e dos acontecimentos, que nos é até tão agradável de tão previsível.
Adoro caminhar sozinho. Porque nunca caminho só. Comigo caminham os meus: os meus meus mas também os meus amigos. E em todo aquele processo nunca caminhei sozinho. Pegaram-me na mão como quem pega na mão de uma criança e conduziram-me, passo a passo, pé ante pé, levando-me ao que me fundamenta, fazendo-me recordar os quem eu sou e trazendo-os de volta.
Não há despedidas sem dor. Sem um profundo sentimento de perda, sem a companhia da culpa, sem o desejo inconfessado de preferir estar num outro lugar, numa outra circunstância, onde todas as peças se pudessem encaixar sem a inevitabilidade da escolha.
Ontem foi o Lino. Mas parece que os meus últimos tempos estão todos ligados à perda.
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