20241017

 Devemos passar de um “ser de” e um “ser para” para um “ser com”. Há uma verticalidade no "ser de" e "ser para" que é mais consentânea com uma relação de poder que com uma relação de amor. Na verdade, eu não sou "para" nem "de" Deus ou dos outros mas sou "com" Deus e "com" os outros. Esta horizontalidade, este "com", apela a uma comunhão, uma ausência de posse, uma aprendizagem mútua que conduz ao aprofundamento da relação, ao crescimento da intimidade e, por conseguinte, do amor. E ao reconhecimento. Tão importante!

No filme do Avatar o que retive mais não foi a tecnologia fabulosa mas o Na'vi "Oel ngati kameie" (I see you). O "eu vejo-te", sendo aparentemente simples, tem em si uma série de implicações absolutamente determinantes. O Papa Francisco chama-nos muitas a vezes a ver os invisíveis, aqueles por quem passamos e nem reparamos. E atrevo-me a dizer que esses nem sequer são os difíceis. Os particularmente complicados são aqueles com quem nos cruzamos frequentemente e que escolhemos ignorar, fazer de conta que não vemos, desejar que não existissem na nossa vida, Esses é que são o nosso desafio. Porque exigem uma proatividade que, para além da nossa atenção, apela à nossa vontade, ao esquecermos o ressentimento, e isso não é partir do zero mas do menos qualquer coisa para tentar construir algo de positivo. Neste caso, o eu vejo-te alia-se ao eu escuto-te e isso é já o eu sou contigo. Até o posso ser na discordância profunda, no desentendimento, mas isso é também aprendizagem, é mútuo contributo para o mútuo crescimento, é também "ser com".

20241016

Seguíamos para o aeroporto. A minha filha é coordenadora de uma equipa numa multinacional e volta e meia sou um pai Uber de todos os meus filhos. No caminho falava com ela de algo que me inquietou: na despedida do congresso das escolas católicas os dirigentes estavam em cima do palco. Só homens. Da área do ensino onde, como sabemos, as mulheres estão em larga maioria. A estranheza foi tanta que eu, que normalmente não ligo puto a isso, reparei. Só homens. O que significa uma de duas coisas: ou elas não são competentes para estar lá, ou são impedidas de lá chegar. Não gosto das quotas, não ligo se são homens ou mulheres, parto sempre do princípio que a competência fala mais alto. Sou ingénuo, claro. E partilhei isso com a minha filha. E ela, que nessa mesma semana tinha estado numa operação da Team Building da sua empresa, disse que o mesmo se passava lá: nas chefias superiores, só homens. Daí para baixo, quase só mulheres. Não entendo. Para mim nunca foi importante quem me dirigia, a não ser a sua competência. Não é importante o género, a orientação sexual, a altura, o peso, o nome, a condição... ninguém me merece mais ou menos respeito por causa das suas circunstâncias ou escolhas pessoais. E não tenho qualquer dúvida que é um erro considerar tudo isso um obstáculo para o que quer que seja num clima organizacional (já para não falar do âmbito das relações pessoais). Eu, que fico solenemente irritado com os "portugueses e portuguesas" dos nossos políticos, percebo que as mulheres se possam sentir relegadas para segundo plano quando me deparo com estas coisas. Mas acredito que não será por muito tempo. Nem elas deixam.

20240923

“Cada religião é um caminho para chegar a Deus. Existem diferentes línguas para chegar a Deus, mas Deus é Deus para todos…Existe apenas um Deus e cada um tem uma língua para chegar a Deus” (Papa Francisco)

É evidente, não é? Para mim já o é há imenso tempo, mas caímos sempre na tentação de enclausurar Deus, de O fazer nosso e apenas nosso como única maneira de nos sentirmos especiais diante d'Ele. Durante anos ouvi, nomeadamente na faculdade, a dizer que sim, todas as nossas religiões têm algo de validade, mas a nossa é a melhor. Desde sempre o contestei. No início porque intuía que não seria bem assim, depois, à medida que fui crescendo na fé, fui confirmando com alguma racionalidade essa intuição. 
Mas na verdade, o que me preocupa é a minha necessidade de validação. Apesar de ser para mim quase uma evidência o que disse o Papa Francisco, não consigo deixar de sentir alegria por ele dizer o mesmo que eu. Como se precisasse que ele o dissesse para que eu o diga à boca cheia. Na verdade, não preciso, porque já o dizia, mas há uma necessidade de validação, uma necessidade de me encontrar do lado certo da cerca, do "eu tinha razão, embrulha" que sendo humana, me desagrada em mim. Para começar, a cerca não me agrada. É-me constitutiva, faz parte de quem sou, mas não me agrada. Nada. Depois, porque na verdade não há lados certos e errados quando falamos de Deus, sobretudo se o fazemos a partir da verdade da experiência pessoal e comunitária de cada um. Quando falamos de Deus há patamares, há intenções, há fé - sim, há sempre fé nas afirmações positivas ou negativas acerca de Deus - há lugares a partir dos quais falamos, mas falamos sempre do que não conhecemos porque nos é infinitamente interior e infinitamente maior. Somos sempre infinitamente pequenos quando falamos de Deus. Quer seja eu, quer seja o papa. 

20240919

"São-lhe perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama." Lc 7, 36-50

Há uns anos, em Taizé, uma reflexão bíblica despertou-me para esta ligação íntima entre amor e pecado. Até essa altura, nunca me tinha sequer apercebido que estariam ligadas. Como é típico de Taizé, que procura sempre um outro olhar sobre as leituras - bíblica e da vida - a pergunta que era colocada era se o perdão era muito porque se tinha amado muito ou se o perdão era necessariamente muito porque, como se amava muito, pecava-se muito. Não é bem a mesma coisa. Perdoar muito porque se ama muito cheira a recompensa: Perdoar muito porque, por amor, se peca muito, cheira a risco aceitado. 

Acredito que as Escrituras nos dizem o que, em dado momento, precisamos de ouvir. É como se Deus viesse ao nosso encontro nas perguntas e inquietações mais profundas. Não nos fala exclusivamente através das Escrituras, claro, mas nelas encontro sempre o que procuro, sobretudo quando não sei que procuro, sobretudo quando não gosto particularmente do que encontro. 

Ser perdoado será, talvez, junto com a inquietação, a minha ânsia mais profunda. Não sei concretamente de quê, mas intuí sempre que ser perdoado seria a condição fundamental para poder colocar a hipótese de ser amado. Por isso, quando discuto, quando me chamam à atenção, quando as coisas não correm bem, geralmente tenho dois momentos: um, imediato, motivado pela vergonha, em que barafusto; outro, posterior, na solidão, motivado pela culpa, em que me pergunto o que fiz e não deveria ter feito ou não fiz e deveria ter feito. E chego, invariavelmente, à conclusão que estive - estou sempre - aquém do que deveria ser e que, invariavelmente, a culpa é minha. E nada nem ninguém é capaz de aliviar essa dor.

Amar muito é um bom motivo - talvez o único bom motivo - para errar muito. Amar muito e muito intensamente é correr muitos riscos, é ser como Pedro e viver com o coração perto da boca, é ser intempestivo e voluntarioso, irracional e, mais uma vez como Pedro, viver com a indelevelmente permanente sensação que apenas se é digno de se ser amado se fizermos grandes gestos, se proferirmos grandes proclamações, se formos maiores do que alguma vez fomos ou sentimos ser. É darmos passos maiores que a perna. É ouvirmos: Zé... tem juízo, hoje mesmo negar-me-ás três vezes... É sentir, todos os dias, esta necessidade de pedir perdão por existir. 

Por isso, quando, em Taizé, percebi que haveria a possibilidade de esta necessidade de perdão advir desta necessidade de amar e ser amado, a minha culpa ganhou um outro sentido. Um sentido que não permanece, que passa rápido, que facilmente se remete para o esquecimento. Mas que, como hoje, pode ser recordado. E sempre que o é, torna um dia qualquer, num dia bom.

Bom dia :-)

20240916

Hoje temos consulta. De novo. Juntos. Mais um dia de conversas, algumas sobre coisas mais ou menos importantes, a maioria sobre coisa nenhuma. O meu pai é mestre na conversa sobre coisa nenhuma. É normal. Sente o silêncio como incómodo. Vai daí, enche-o como se enchia uma almofada com sumaúma e ficava uma coisa meio disforme, cheia de grumos, onde a custo se repousava a cabeça. São mais ou menos assim, as nossas conversas. Nunca senti que nelas - ou nele - tivesse o suporte tantas vezes por mim precisado para pousar a cabeça. Mas tem sido bom. Muito bom. Mais uma vez, sou para o meu pai o que sempre fui: cuidador. O seu cuidador. Gosto de acreditar que, em determinada altura, ele se tenha preocupado em ser o meu. Não dei por isso. Sempre dei conta do contrário, desta inversão de papéis. Não apenas com ele, mas também com a minha mãe, os meus irmãos... Houve uma altura em que lidei mal com isso. Agora, à medida que vou ficando velho, vou lidando melhor. E hoje, é mais um passo nessa vontade de melhorar. Vamos juntos à consulta. Vamos conversar. E, com sorte, alguma coisa há de ser dita de significativa. Se não o for, não tem importância. Estaremos juntos. A conversar. Juntos. A construir memórias. 

20240912

"el milagro se trata de “personas pequeñas, en lugares pequeños, haciendo cosas pequeñas” a favor de los crucificados" 

https://www.religiondigital.org/cree_en_la_universidad/Dios-entienden-XXIV-Domingo-Ordinario_7_2705799408.html

Creio no Deus da pequenez. Creio no Deus que me troca as voltas e à minha insaciável, ocultada mas constante sede de protagonismo alicerçada num auto-imposto amor próprio que muitas vezes me conduz à tentação dos bicos de pés. Creio no Deus que me acontece por entre as batalhas do orgulho e me acorda chamando pelo meu nome. Creio no Deus que me chega de fora, nos outros e pelos outros, tantas vezes por palavras que magoam mas me recolocam no Seu caminho. Creio do Deus do sussurro, do inaudível, do inaudito, do pressentido, do intuído, que escolhe não prescindir de mim, da minha vontade, do meu desejo de acordar para poder ser.

Conversávamos o final do Caminho, como o fizemos em Taizé, no CoMTigo, nos corredores do colégio. Há já muito tempo que somos mais que os papéis que assumimos, há já muito tempo que somos mais que professor e aluno, há já muito tempo que partilhamos dúvidas e medos que descobrimos comuns, embora desfasados no tempo. Sempre que conversamos fico espantado com o que lê de mim: nas minhas quedas as suas quedas, nos meus medos os seus medos, nas minhas ressurreições a esperança das sua ressurreição. É a procura que nos une, a insaciedade interior que nos atormenta e nos impulsiona, mas sobretudo esta nefasta e omnipresente necessidade e dificuldade em nos sentirmos gostados. que nos torna inseguros, carentes, sedentos de atenção. E são sempre mutuamente importantes as nossas conversas.

Nunca entendi bem o "E quem dizeis vós que Eu Sou" de Jesus. Entendo-o em mim - falamos justamente nisso, na nossa conversa - mas não em quem é cheio de certezas. Mas depois penso que, calhando bem, talvez Jesus não fosse assim tão cheio de certezas. Talvez andasse à procura. Talvez tateasse a vida, talvez intuísse o Pai, talvez estivesse necessitado do Seu Amor. Talvez fosse mais como eu e menos como o deus que todos pensava que era. E sinto-me ainda mais próximo dele.

20240911

Faz parte

Não lido mal com a dor. Alias, há muitos anos, acordo com dor, vivo com dor e adormeço com dor. De cabeça. Da que mói porque está sempre presente. Mas eu remeto-a para canto. E normalmente faço-o bem. Esqueço-me dela. Quando me convidaram para fazer mais um Caminho de Santiago, sabia que teria a dor por companhia. O Rumos, no princípio deste ano, acentuou mazelas e eu sabia que o Caminho, sendo muito mais violento, as deixaria mais profundas. E eu lidei com elas. Logo a partir dos primeiros kms do segundo dia as articulações deram de si, como eu previa. No final desse dia seguia o método de São Francisco e chamava amiga à dor. Ontem tinha o tornozelo como uma batata e fui ao médico. Ele perguntou-me porque raio andava assim há tanto tempo e, sobretudo, porque tinha feito assim o Caminho. Respondi "faz parte", como digo para mim próprio sempre que tenho que lidar com o lado B das coisas. Faz parte. A minha dificuldade não é propriamente a dor. Quando a conheço, quando a antecipo. puxo-a para mim, é minha amiga, faz parte do que sou. Não a procuro, mas acolho-a, como acontece com as coisas menos boas que me acontecem na vida. Faz parte. Nada é só bom. Nada é só mau. E recordo sempre Job, o primeiro livro que, era muito miúdo, li na Bíblia e me levou a querer estudar e aprofundar a Palavra. A minha dificuldade é com a dor inesperada. Quando ela vem sem contar e me apanha distraído, impreparado, mergulhado numa outra realidade onde ela não é suposto entrar. Essa é a dor que me abana. Sempre. Que tento, em vão, perceber. Que tento, em vão incorporar. Que tento, em vão chamar amiga mas que tudo em mim se recusa a fazê-lo. Mas esta é também uma dor que faz parte. Ou que tento que faça parte. Por vezes, infrutiferamente - o que deixa marcas irreparáveis (tenho algumas) - por vezes, racionalmente - engavetando-as, suspendendo-as, deixando para quando estiver minimamente preparado para lidar com elas. Voltar ao Caminho recordou-me que as dores maiores nunca são físicas. Voltar do caminho recordou-me que as dores da alma, as dores da ausência, as dores da saudade são as que pedem uma gaveta à sua medida. Venha ela. Tenho tantas!

  Devemos passar de um “ser de” e um “ser para” para um “ser com”. Há uma verticalidade no "ser de" e "ser para" que é m...