0751 Viver o despojamento que Jesus viveu é viver de acordo com uma convicção profunda acima de tudo. A convicção profunda de Jesus era a do Reino dos Céus: somos filhos amados pelo Pai. Esta era a sua convicção e foi em nome dela que viveu e morreu. Viver assim pressupõe uma escolha profunda e uma certeza capaz de combater todas as noites escuras. E Jesus também as teve, como no Getsémani, também rezou para não ter de as enfrentar e também se resignou a ter de o fazer. Até nisso partilhou da nossa humanidade. Uma humanidade em que o único verdadeiro privilégio é ser filho do Pai. Se até a mim, que tento viver mergulhado na fé, o sentido de tudo isto se me escapa tantas vezes, como não há de escapar àqueles para quem a fé não é mais que uma vaga ideia? Sobretudo quando o despojamento que nos é pedido nos toca naquilo que nos é mais fundamental: a necessidade absoluta de sermos reconhecidos. Note-se como também nisto a vida e morte de Jesus foi absolutamente paradigmática: Jesus só fez o bem e até pelos seus (exceção feita à Mãe, a Maria Madalena e a João) foi abandonado. E não foi só por medo, mas pela certeza que o reconhecimento de que seriam alvo - seria tudo menos positivo: “Nós pensávamos que…” diziam quando regressavam a Emaús. Quando perceberam que afinal não havia lugares à Sua direita mas perseguições, apressaram-se a negá-lo. É deste despojamento que nos falam as leituras do próximo domingo. O despojamento da viúva de Sarepta, o despojamento do sacerdote que apenas serve, o despojamento da viúva anónima que entrega o seu único garante de sustento - e de existência social. É este o despojamento que eu não consigo ter. Na verdade, se não tiver os meus do meu lado, o que vale a pena?
o meu próprio olhar
dizem-me muitas vezes que vejo o que mais ninguém vê... raramente é um elogio!
20241106
20241105
Deus está no leme poderia ser uma boa alegoria para a minha vida. E assim evitar o pânico. Ainda esta noite acordei às 4 e tive dificuldade em voltar a adormecer por causa do pânico provocado pela imensidão de coisas que tenho de fazer. E tudo para ontem! Mas preciso acalmar, serenar-me interiormente e confiar. Nada tenho de fazer que não seja capaz de fazer. Essa é a constatação do meu limite, da minha vulnerabilidade, da minha humanidade. Eu sou limitado. A minha medida é a do possível. Do irremediavelmente pequeno. Desde que por Amor.
A propósito de Lc 14, 15-24: a única coisa que posso fazer é convidar. E não posso fazer outras coisas: ficar zangado se não participam; duvidar das suas justificações; deixar de convidar. O convite deve existir sempre, o acolhimento deve existir sempre, o aliviar da carga da culpa deve existir sempre. Mesmo sabendo que, se alguém escolhe não participar, ficarei e ficaremos todos mais pobres. Mas não sei, de todo, as dinâmicas familiares de cada um. Não sei de “estás sempre fora de casa”, não sei de “preciso de ti aqui”, não sei de “estou tão esgotado”, não sei de “se hoje for, rebento”. Não sei, não posso saber, e, francamente, não adiantaria de nada saber. A não ser para consolar. E para dizer “fica. Sem problema. Não faltarão oportunidades”
20241101
Acabo de chegar do cemitério. É tradição, cá por casa. Anos houve em que me custava imenso estar lá de pé, no meio de uma multidão da terra, durante a eucaristia ao ar livro. Á medida que os anos vão passando, a sensação é que me vai custando menos. Antes, junto à campa, éramos imensos. Agora já passaram bastantes para o outro lado. Ou melhor, para uns palmos mais abaixo. Mas continuamos a estar juntos neste dia. No final, o padre disse para rezarmos pelos que tínhamos diante de nós. Não consegui deixar de sorrir. Acredito muito que o contrário acontece: são os que estão junto do Pai que rezam por nós, pela nossa cegueira, pela nossa apetência, persistência e competência para a asneira. Não precisam que rezemos por eles. Parece-me sempre muito esquisita esta ideia de um Deus que precisaria que rezemos pelas almas para que Ele se lembre delas. Esquisita e muito contra tudo aquilo que Jesus testemunho: por acaso o Pai se esquece do Seu filho? Enfim! São coisas mais da mentalidade humana, viciada na recompensa, que do Amor. Talvez seja por isso que, pelo menos até aqui não temo a morte. Porque confio inteiramente no amor do Pai. Se assim não for, se estou à espera que sejam os meus méritos a fazer alguma coisa para me garantir a salvação, o melhor é despachar já a coisa: quanto menos viver mesmo asneiras faço.
20241031
Ainda me espanto! Perante o desafio de pensar num adulto que tenha sido significativo na minha infância e adolescência - no sentido de me ter feito sentir amado, desejado, acarinhado - o que senti foi uma inesperada mas profunda solidão. E dor. Há perguntas que ainda não suporto. Há questões que ainda prefiro deixar arrumadas, bem ou mal arrumadas, para que não tenha de mexer nelas. Porque nada de bom daí virá se o fizer. Não tenho nada a ideia que se deve falar de tudo, pôr tudo a descoberto, para se resolver. Há coisas que não têm resolução possível. E há coisas cujo custo de resolução seria demasiado alto para muita gente, e eu não tenho o direito de, para ficar bem, pôr outras pessoas mal. É tão simples como isso. É até lógico. Ficaria eu bem sabendo que, para aliviar a minha pressão estaria apenas a enviá-la para outros? Claro que não. Então... Mais vale ficar quietinho no meu canto. Normalmente lido bem com estas dores: remeto-as para os confins e não penso nelas. Algures no tempo - nem que seja quando morrer - elas serão resolvidas. Ou não. É lidar.
Gosto menso da ideia da serenidade. Gosto imenso do silêncio, da quietude, do abandono à aparentemente coisa nenhuma que a maior parte das vezes se transforma no mergulho na imensidão. Gosto do escuro, do recolhimento, do olhar para dentro e aí permanecer. Gosto do tempo, do dar tempo, do ter tempo, para poder acampar dentro de mim e deixar fluir e fruir, serenamente, do que me habita.
O problema é que raramente consigo essa serenidade. Nos dias bons até posso procurar um lugar calmo e propício, até me posso isolar, até posso encontrar o silêncio exterior que me proporcionaria esse encontro profundo comigo mesmo. O problema é que nem sempre a cabeça se cala. Mal me acomodo, mal me aconchego, lá começa a sua berraria com a imensidão do que tenho para fazer, do que tenho para resolver do que ainda não fiz…
Hoje é um dia desses. Complicados. E preciso de serenar. Muito.
20241024
Nunca mais esqueci o filme Crash (Colisão), de Paul Haggis. Naquele filme não há maus absolutos nem bons imaculados: há pessoas e circunstâncias, há pequenos acontecimentos que vão envolvendo uns e outros, sendo que uns e outros são capazes de coisas boas e más dependendo das respostas que vão conseguindo dar ao que vai sucedendo. Há como que uma cozedura progressiva, um progressivo adormecimento da razão e dos sentidos que, tal como acontece com a rã, mantém a todos indiferentes a uma água que vai sendo, progressivamente, mais quente. Tenho-me lembrado tanto deste filme!
De acordo com a informação que vou conseguindo ter, não encontro grandes culpados nos acontecimentos mais recentes de Lisboa. Encontro medo. Encontro sofrimento. Encontro respostas ao medo e ao sofrimento. Por isso encontro tragédia. A tragédia de uns polícias cansados e a maioria das vezes frustrados face ao que, dia após dia, noite após noite, têm de enfrentar; a tragédia de pessoas remetidas para uma berma, cansados de tanto lutar para chegar a lado nenhum, para se sentirem coisa nenhuma. A tragédia do medo, que perpassa o dia de uns e de outros, um medo em tudo semelhante, que em tudo os une: medo do que possa acontecer aos que os esperam em casa e que uns e outros querem proteger; medo do que possa acontecer a eles próprios, medo da impotência, da irrelevância da sua própria vida.
Nada disto começou esta semana. Nada disto é absolutamente inesperado por nenhum de nós. E estamos, de certeza, a fazer qualquer coisa muito errada, para permitirmos, todos, que um caldo destes vá sendo cozinhado enquanto escolhemos não ver, não agir, não aliviar o sofrimento. De todos. Porque é de sofrimento que se trata. De todos. Sofrimento antes dos acontecimentos, sofrimento durante os acontecimentos, sofrimento depois dos acontecimentos. Um sofrimento que eu poderia aliviar, à medida das minhas possibilidades. Um sofrimento que cada um de eus poderia aliviar, à medida das possibilidades de cada um dos eus. Porque não adianta, agora, vociferar. Não é pela gritaria que chegamos lá. Nem pela massificação. É por aquilo que eu, hoje, aqui e agora, escolho fazer. Para aliviar o sofrimento daquele que está a escassos metros de mim. O resto são desculpas.
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